Tipo Aquilo #88 – A vênus avant-garde cromada
Hans Donner e a construção da identidade visual clássica da TV Globo
Tempo de leitura: 8 minutos
Em julho de 2006, um bando de desajustados estudantes de design estava no auditório principal do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, ansiosos pela palestra que fechava mais um dia da 16ª edição do NDesign, o Encontro Nacional de Estudantes de Design. O ciclo de apresentações do dia terminou com ninguém menos que Hans Donner falando sobre sua trajetória no design gráfico, da Áustria ao Brasil, e os elementos que deram forma ao seu portfolio e a identidade visual da maior emissora de televisão do país: gradientes cromáticos (pode chamar de dégradé também), cromado e Avant Garde. O problema é que o “mago das vinhetas”, àquela altura, tinha virado um personagem esquisito: o marido gringo da Globeleza que aparecia dia sim dia não no Video Show falando de computação gráfica, alguma nova abertura de novela, Brasil 500 anos e mais show-off de degradê e cromado.
Claro que foi uma palestra bagunçada, com momentos de algazarra da audiência, um Hans Donner pouco confortável no palco, e a entrega “honrosa” do primeiro e único Prêmio Taglia Design (quem viveu isso não me perdoaria se eu não mencionasse) ao austríaco. A gente não tinha maturidade para entendê-lo (e não estou falando de sotaque), ele parecia um clichê ambulante de todo o deslumbre criado pelo seu trabalho nos anos 80 e 90, mas que não deslumbrava mais nos anos 2000 — as marcas e vinhetas entregues pelo departamento gráfico da emissora pouco dialogavam com o zeitgeist do design gráfico na época. Desde então, a Globo atualizou sua marca, sua identidade visual e o estilo de suas vinhetas, deixando o estilo Donner para o legado. Hoje, o Tipo Aquilo dedica-se a esse estilo Donner que marcou a TV brasileira, sendo até imitada por outras emissoras, e os aspectos ligados à tipografia presentes na identidade visual clássica da Globo.

Existe uma rivalidade atual sobre quem fez a primeira transmissão de TV em alta definição no Brasil, em meados de 2008. Contudo, é certo que, há 22 anos, em 19 de fevereiro de 1972, a Rede Globo fez a primeira transmissão a cores no Brasil. O brasileiro tinha tomado gosto pela televisão, tendo sido vendidas 6 milhões de unidades desde a fundação da primeira emissora, a TV Tupi, em 1950. Só que a história da TV a cores no Brasil é uma grande carruagem na frente dos bois, com as primeiras unidades chegando no mercado por preços mais altos que os prometidos pelas fabricantes. Além disso, as lojas eram incapazes de demonstrar a novidade porque a programação a cores funcionava apenas nas horas em que as lojas estavam fechadas — enquanto a população esperava que toda a programação seria transmitida em cores desde a oficialização do PAL-M. Havia um dilema no ar: as fabricantes só reduziriam os preços quando as emissoras se comprometessem a migrar toda a programação para cores; para as emissoras, essa transição só fazia sentido quando houvesse uma quantidade significativa de aparelhos compatíveis nos lares. Enquanto isso, os milicos, interessados no desenvolvimento da tecnologia televisiva para fins de propaganda política, esbravejavam com ambos, tentando forçar um acordo que aumentasse as vendas de TV's e garantisse mais programas a cores.
Três anos depois, em 1975, um tal de Hans Donner bate na porta do Walter Clark, diretor-geral da Globo. Hans havia se formado em 1970 na “die Graphische”, a alcunha do instituto federal austríaco de educação em artes visuais, e viu potencial no mercado publicitário brasileiro em uma matéria de uma revista de seu país. Veio pra cá em 1974, batendo em várias portas e recebendo vários nãos. Contudo, Clark sentiu-se convencido pelo portfolio de Donner, garantiu-lhe um emprego e fez nascer um departamento de arte na emissora, levando à clássica história do nascimento da marca num guardanapo, com o designer divisando um círculo interno dentro de um retângulo dentro de um círculo externo — em sua interpretação, a Globo transmitindo o mundo via TV. Em uma breve viagem de volta para a Áustria, trouxe consigo o fotógrafo, ilustrador e animador Rudi Böhm. Os dois trabalharam em parceria na emissora por um longo tempo, com Donner divisando marcas e vinhetas em seus desenhos, e Böhm executando-as em sua máquina Oxberry, um dos primeiros trambolhos aparelhos table-top voltados para a criação de animações para TV.



Hans trouxe, além de Böhm e seu guardanapo rabiscado, mais ideias para renovar a identidade visual da Globo e aprofundar a mudança trazida com as transmissões a cores. A então marca da emissora era um pictograma de um globo terrestre com um logotipo composto em Microgramma, criada em 1952 por Aldo Novarese e Alessandro Butti. As letras superquadradas e pesadas, replicadas nas sub-marcas de todos os programas e até nas afiliadas, davam um ar austero e criavam um apelo futurista que seguia num caminho oposto às ideias de Donner, afeito à tridimensionalidade e à geometria. Poucos anos antes, em 1970, Herb Lubalin e Tom Carnase tinham transformado os caracteres da marca da revista Avant Garde em uma família tipográfica completa para fotocomposição. As letras, geométricas e recheadas de ligaduras incomuns para a época, casavam com o repertório visual que Donner visava para si e para a emissora, criando um logotipo que duraria por mais de 30 anos. Vários programas também tinham suas marcas compostas em Avant Garde, com ligaduras excêntricas sempre que possível.
Essas mudanças também apareceram nas sub-marcas de programas, novelas e afiliadas da Globo, como se tudo antes de Donner fosse apenas preto-e-branco. Pouco a pouco, a TV a cores começava a ganhar a queda de braço no varejo, e nos lares dos brasileiros, a emissora mostrava belas animações criadas tanto por Böhm em sua Oxburry, quanto por outras empresas americanas contratadas pela emissora. Além da Avant Garde, Donner utilizava a Globoface, uma tipografia inspirada na VAG Rundschrift (criada para a Volkswagen em 1970), para letreiros complementares de créditos. As formas geométricas da Globoface casavam com o gosto de Hans Donner e o estilo das animações e vinhetas. O contraste quase nulo entre seus traços finos e espessos, os terminais redondos com poucos detalhes, e a presença de uma sombra preta destacando o texto em branco fazem dela uma escolha apropriada para transmissões em baixa definição, preservando sua legibilidade. O uso dela perdurou até 2018, quando a emissora começou a substituí-la por uma tipografia customizada, criada pelo estúdio Plau.


A partir dos anos 80, a TV em cores tornou-se mais presente nos lares dos brasileiros, e os elementos-chave do repertório visual de Hans Donner ganharam ainda mais evidência com uma nova tecnologia em cena. O austríaco gostava de usar a geometria e a abundância de cores em suas marcas e vinhetas; embora as cores não fossem exatamente um problema para tecnologias de animação como a Oxberry e a Luminatics, a representação de profundidade e a dinâmica de formas e elementos em tela nem sempre parecia natural. A criação de animações com computação gráfica tridimensional parecia a resposta perfeita que Donner procurava para alcançar a fluidez e o aspecto de “cromado” em seus efeitos especiais. Enquanto a Globo não tinha equipamentos para computação gráfica em 3D, ela tornou-se cliente do New York Institute of Technology, e pouco depois, bancou a fundação da Pacific Data Images Inc., criada por Glen Entis, Carl Rosendal e Richard Chuang. Os três eram pesquisadores de computação gráfica e, por um ano, atenderam exclusivamente a Globo, criando as vinhetas encomendadas por Donner. Lembrando que a criação de animações em 3D na época era um processo rudimentar: os “animadores” eram matemáticos que configuravam em código os elementos e seus atributos visuais, as dinâmicas das formas e da câmera. Apenas após a renderização, era possível saber se tudo estava certo.
Luiz Velho, pesquisador do Impa (Instituto de Matemática Pura Aplicada), conta em depoimento que José Dias, então técnico de eletrônica da Globo, intermediou as conversas entre a emissora e o trio da PDI (que, na década seguinte, foi adquirida pela DreamWorks SKG). Ajudou também no acordo entre as duas empresas, em que a Globo financiou o funcionamento da PDI por um ano, e a PDI comprometia-se a atender exclusivamente a Globo neste período e transferir a tecnologia que desenvolvessem para o Brasil. O salto de qualidade das animações da emissora carioca foi impressionante, com formas metálicas flutuando e refletindo com precisão os elementos ao redor, e finalmente atendendo o padrão de qualidade que a Globo desejava. Logo, a emissora tornou-se capaz de criar suas próprias vinhetas, tornando-se a maior produtora de computação gráfica no mundo durante a década de 80. Algumas pessoas que fizeram parte desse momento, como o próprio Velho, utilizaram esse conhecimento para impulsionar a pesquisa sobre matemática e computação gráfica avançada no Brasil, fundando o laboratório Visgraf no Impa.

As vinhetas feitas pela Globo abusavam do cromado, de formas geométricas e de espectros cromáticos. Donner via o uso extensivo dessa linguagem não apenas como uma expressão pessoal, mas também como uma assinatura da marca e uma afirmação do que a tecnologia exclusiva da Globo era capaz de produzir. A própria marca da Globo mudou, absorvendo esses elementos e transformando-se na versão mais lembrada pelo público, com as esferas cromadas e o retângulo multi-colorido. A era do preto-e-branco, aos trancos e barrancos, tinha ficado para trás, e esse uso do cromado ajudou a consolidar o apelido da emissora de “vênus platinada”. Mesmo que, atualmente, a própria Globo não use tanto o estilo definido por Donner, o uso desses elementos por outras emissoras até hoje ainda é visto como imitação. Por sua vez, a Globo demorou a abrir-se para outras linguagens visuais: nos anos 2000, o cromado e o multicolorido já não causavam tanto deslumbre. Donner havia capitaneado outros projetos que não fugiam de sua zona de conforto, como os relógios comemorativos aos 500 anos do descobrimento do Brasil e o relógio Time Dimension.
O estilo Donner de vinhetas e efeitos especiais já não se faz mais tão presente. O próprio designer deixou a emissora em 2021, tendo feito um papel expressivo numa história impressionante de desenvolvimento de tecnologia e da criação de uma das identidades visuais mais lembradas do país. Chega a causar um pouco de estranhamento as versões novas de vinhetas clássicas da emissora, que utilizam uma linguagem mais “realista”, ante as versões clássicas com elementos cromados ultra-reflexivos passeando pela tela. A grande mudança de identidade visual da emissora, em 2021, colocou definitivamente em legado essas coisas que parecem piegas, mas foram um diferencial que ajudou a posicionar a Globo como líder na cabeça dos telespectadores brasileiros. Tendo isso em mente, eu gostaria de fechar essa edição com um recado para uma pessoa especial: Hans, aquilo lá em 2006 do Prêmio Taglia foi só uma piada ruim (nah, mentira, foi uma piada legal sim) de jovens inconsequentes; não grila com isso não, o Brasil te ama.
Recomendações:
🎧 Podcast: Nerdcast #228, com os apresentadores recebendo Marcelo Souza, Fernando Reule e Anderson Gaveta para um papo sobre computação gráfica para cinema e publicidade.
🎥 Vídeo: Programa do Jô em entrevista com Hans Donner em 2007.
🔗 Link: Memória Globo, contando sobre a passagem de Donner pela Globo entre 1975 e 2021, com algumas de suas vinhetas mais importantes.
🇧🇷 Fonte brazuca: Globotipo, de Rodrigo Saiani.
Escrito em 101645.833
Você é muito bom, né?? Avemaria eu amei esse texto!!