Tipo Aquilo #82 – Ziraldo e as letras dos quadrinhos
Analisando letras de quadrinhos e das artes de Ziraldo
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Enquanto eu escrevo esse texto, há poucas horas, foi para as estrelas um dos mais ilustres cidadãos de Caratinga, MG. Aos 91 anos, Ziraldo faleceu em sua residência, deixando um legado de dezenas de personagens desenhados em milhares de quadrinhos, charges e cartuns. Eu sou da geração que conheceu a obra gráfica dele pelo Menino Maluquinho, sua peculiar panela na cabeça e sua turma que andava por jornais, gibis e chegou também aos cinemas. Mais ou menos na mesma época, conheci também o lado editorial de Ziraldo durante a breve existência da Bundas, uma sátira mensal da revista Caras criada para publicar entrevistas, artigos e charges que ilustravam o cotidiano social e político de um Brasil que deixara de ser uma ditadura de malditos milicos há pouco mais de 10 anos.
Como instrumento de crítica sócio-política pública, a Bundas não foi uma novidade na vida de Ziraldo; nos anos 1960, após passar por vários jornais de renome como cartunista, ele fundou “O Pasquim” com outros ilustradores da época, fazendo frente à gradual deterioração da democracia brasileira antes e após o golpe de 31 de março 1º de abril de 1964. O humor debochado era uma marca de Ziraldo, algo tão facilmente reconhecível quanto os traços de seus personagens e as letras espessas e cheias de contraste que escrevia para representar falas e outros elementos textuais. Aliás, é falando brevemente da história das letras usadas em quadrinhos que o Tipo Aquilo presta uma singela homenagem ao Ziraldo.
A história dos quadrinhos, por si só, é bastante profunda e renderia edições a perder de vista. Mesmo que a gente estabeleça a Action Comics #1, de julho de 1938, como um ponto inicial, a revista com primeira aparição do Superman é fruto de dezenas de anos de experimentação, tentativa e erro na narração de histórias em arte sequencial. Tirinhas e ilustrações impressas em jornais e disponíveis em bancas não eram mais novidade para o grande público. No entanto, a necessidade de imprimir em papel barato de má qualidade era algo em comum entre os recém-lançados gibis de heróis da Detective Comics e a arte sequencial de outros periódicos da época. Demoraria dezenas de anos até que quadrinhos virassem algo cult, que valesse a pena uma produção gráfica enobrecida. Dessa forma, desenhistas de personagens com ou sem superpoderes precisaram criar o superpoder de adaptar seus trabalhos às condições paupérrimas de impressão.
Conforme os quadrinhos tornaram-se um produto de sucesso comercial, produzi-los em escala exigiu separar entre artistas distintos os elementos fundamentais de uma história. A primeira, e mais óbvia, divisão foi entre quem desenha e quem escreve a narrativa, consolidando o formato de dupla ilustrador/escritor. Outras funções começaram a ser divididas também, criando profissionais como os coloristas, responsáveis por colorir e conferir noções de volume e perspectiva de acordo com o tom que o escritor deseja passar ao leitor. As letras também foram terceirizadas do trabalho do ilustrador, tornando-se objeto de trabalho dos letristas, responsáveis por criar e preencher balões de fala, complementar cenas de ação com onomatopeias, projetar layouts de capas e marcas das próprias revistas.
A presença do letrista na indústria de quadrinhos ajudou a criar um estilo de escrita de quadrinhos que tornou-se marcante no design gráfico. Feitas à mão para serem legíveis mesmo sob condições ruins de impressão, as letras eram majoritariamente maiúsculas, largas, com contraformas fartas e traços com gestualidade bem presente, distanciando-se das letras mecânicas das oficinas tipográficas. Era comum também o uso de negrito e itálico para dar ênfase a algumas partes importantes das falas, quando letristas usavam penas ou canetas técnicas mais espessas para dar efeito de negrito, e entortavam as letras em ângulos expressivos para reproduzir o efeito itálico. Algumas tentativas de mecanizar o processo de letreiramento das histórias em quadrinhos falharam em reproduzir essa gestualidade reconhecível de longe por outros artistas e os fãs dessa nova arte, garantindo a presença dos letristas na industria até os anos 1990. O desktop publishing, nesta década, tornou-se padrão para a criação de novas HQ's e o trabalho dos letristas foi substituído por fontes que replicavam com maior fidelidade o estilo clássico das letras feitas entre as décadas de 1930 a 1990.
O barateamento dos processos gráficos e o enobrecimento da produção das HQ's após a década de 1990 aprimorou a impressão dos gibis, permitindo o uso de tipografias em tamanhos pequenos e impossíveis de serem reproduzidos com nitidez no passado. Contudo, mesmo com essa melhoria na produção gráfica, o estilo de letra de quadrinhos vingou, sendo encontrado até hoje em qualquer revista de Marvel, DC ou quaisquer editoras de histórias em quadrinhos. Richard Starkings, letrista de quadrinhos famosos como “Batman: a Piada Mortal” e criador da foundry Comicraft, foi um dos responsáveis por essa transição que agilizou a produção de quadrinhos no ambiente digital. O uso dessas fontes virou também um cliché do design gráfico para emular a linguagem dos quadrinhos nas narrativas presentes em quaisquer peças gráficas e até em outras mídias, como na TV e no cinema.
Entre os artistas independentes de arte sequencial, a coisa muda de figura. Sendo responsáveis por quase tudo na produção de suas obras, as letras dos quadrinistas indies torna-se uma marca registrada do artista, complementando seu traço e a forma com que dispõe elementos visuais ao longo de suas páginas. Também, entre os quadrinistas independentes, é comum o uso exclusivo de letras maiúsculas, mais fáceis de serem escritas com uniformidade e que aproveitam melhor o pouco espaço disponível dentro do quadro e do balão de fala. Tendo que cuidar de história, roteiro, desenho, letreiramento e cores, as falas e elementos textuais ao longo da publicação não têm o mesmo apuro que os quadrinhos das grandes editoras, uma diferença que colabora para afastar o fã de quadrinhos mainstream do circuito independente.
Com a tipografia digital, alguns artistas independentes conseguem reproduzir a própria escrita em fonte para agilizar a produção de novas páginas sem perder tanto sua autenticidade. A forma com que os elementos textuais e os traços de grandes quadrinistas se complementam é algo que permite a um verdadeiro entusiasta de HQ's reconhecer o autor apenas com algumas letras e entendê-las como uma parte indissociável da obra. Cartunistas como Charles Schultz, Bill Watterson, Robert Crumb, Art Spiegelman, Angeli, Laerte, Henfil, Adão Iturrusgarai, Glauco, Fernando Gonsales, Maurício de Sousa e Ziraldo são facilmente reconhecíveis pelas letras de suas tirinhas, charges e HQ's, que ornam com os traços de seus personagens e a forma com que texto e forma interagem ao longo das obras.
Contraste é um elemento constante nas letras que Ziraldo escreveu. Nos quadrinhos e tirinhas, nota-se leves diferenças entre alguns traços mais finos e espessos das letras em balões de fala. Nas charges, o desenho das letras torna-se ainda mais particular de Ziraldo, com as notórias contraformas quadradas interagindo com formas redondas e dando origem a formas de letras que conversam com curvas e retas presentes na anatomia de seus personagens. A disposição variada das letras, sem uma linha de base clara e com variações evidentes de largura e espessura de traços, também ajudava seu texto a ter o ritmo, a descontração e a irreverência necessária para entender a forma debochada com que Ziraldo via e representava o mundo. Essas letras também eram comuns nos títulos de capas de gibis, com efeitos de cor e sombra comuns na indústria. Essa autenticidade das letras do Ziraldo é algo digno de grandes artistas; no que toca meu lado tipográfico, nenhuma fonte é capaz de reproduzir no todo.
Aliás, Ziraldo é um personagem notório não só nos quadrinhos, mas também no design gráfico brasileiro, tendo produzido cartazes, alfabetos, marcas e ilustrações para livros e álbuns famosos. Ziraldo inspirou uma geração de cartunistas e defensores da democracia no Brasil, encantando crianças com as histórias do Menino Maluquinho e do Pererê, ensinando a fina arte de amar e valorizar a cultura brasileira, e mostrando a importância da consciência política e social para quem deseja um país melhor para todos. Ziraldo fez tanta coisa diferente que nem parece que até as suas obras mais singelas têm a cara dele, e isso é uma rara qualidade de quem sabe ser e mostrar-se autêntico. Se existe algo essencial de aprender com Ziraldo, mais do que saber desenhar ou criar histórias, é essa arte da autenticidade.
Recomendações
🎧 Podcast: Conversarte Quadrinhos, com Ziraldo e Elifas Andreato conversando sobre conscientização política para crianças e o incentivo à leitura na era digital.
🎥 Vídeo: Where the "comic book font" came from, (em inglês) um vídeo da Vox mostrando a origem e história do estilo de letras de quadrinhos.
🔗 Link: Calligraphr, uma ferramenta para pessoas criarem fontes a partir da letra casual.
🇧🇷 Fonte brazuca: Mudstone, de Erica Jung e Ricardo Marcin.
Escrito em 101265.036
Muito bom
Confesso ter ficado esperando você falar da Comic Sans. Achei que poderia ter surgido nos quadrinhos. XD (não sei se falou dela na newsletter antes de eu assinar)