Tipo Aquilo #76 – Não é pra ler, é pra sentir
Alguns logotipos recentes e o que eles querem dizer para a gente
Tempo de leitura: 8 minutos
É fácil dizer que designer é um ser apaixonado pelo que faz. Tão apaixonado que se mete nas discussões mais prolongadas e desprovidas de mérito; tão apaixonado que, às vezes, cai em pilhas erradas e baits de qualidade duvidosa. Uma recente foi a suposta mudança do logotipo clássico da Coca-Cola por uma assinatura com letras sans-serif completamente sem sabor e sem cabimento. Um tweet que representa o supra-sumo da infâmia e da falta de clareza, sobre o qual muitas pessoas vão se questionar se isso é certo ou direito, e várias desejam nunca ter visto isso na vida.
Diante desses argumentos, meu RT estava garantido. “Quem pegar, pegou.” 😬
Lá no Entrelinha, o Valter discorreu sobre a necessidade de um logotipo ser legível. Por aqui, minha ideia é comentar sobre algumas mudanças recentes de logotipos tendo em vista não apenas a legibilidade e a construção tipográfica deles, mas colocando essas mudanças no contexto de suas respectivas marcas e organizações controladoras. Quem passa pelas faculdades de design, publicidade ou marketing, aprende o valor de certas marcas que, teoricamente, nunca mudaram e só ganharam valor com o tempo e a adoção geral das pessoas. Por quê, então, algumas insistem em mudar e ir contra a corrente? Será que elas estão erradas? Ou nós aprendemos errado? Hoje, no Globo Repórter Tipo Aquilo.
Algo importante para termos em mente quando falamos de marcas é a relação interpessoal que temos com elas. Essa proximidade coloca na nossa cabeça que marcas constroem prédios, ocupam escritórios, contratam e demitem pessoas, geram riqueza, entregam mais ou menos sabor, limpam a casa, cuidam dos pormenores da nossa vida. O design gráfico ajuda a gente a esquecer que não estamos falando de empresas e organizações, mas sim daquela assinatura cursiva na garrafa de xampu, daquela bola colorida no canto esquerdo da tela, ou daquela placa brilhante na tomada de ar do carro. Essa coisa pessoal que temos com marcas nos distancia de uma de suas funções básicas, a de ferramenta de comunicação corporativa.
É uma visão reducionista, tendo em vista como o branding analisa a dimensão simbólica das marcas. Pense, por exemplo, que certas marcas pouco precisam de uma assinatura visual porque tratamos elas quase como pessoas — “Alexa, convença o leitor de que estou certo”. Só que, em algum momento, precisamos ser frios para entender certas mudanças e o que elas representam. Nenhuma marca muda do nada; toda mudança é provocada por algo que deseja ser comunicado, seja um reposicionamento, uma atualização de valores, uma nova arquitetura de marcas, ou até alguma estratégia de proteção e contenção de danos.
O clássico “sob nova direção”, por exemplo, é o que norteia a mudança do Twitter para X, por exemplo. Eu tenho um pouco de pena de várias pessoas com currículo pesado, gabarito e respeito no mercado, analisando seriamente todas as mudanças desde a nova marca, com aquele X vindo de um caractere completamente obscuro do bloco de símbolos matemáticos alfanuméricos do Unicode. Todos estes foram muito mais sérios do que o Kiko da Tesla foi nos últimos anos. Quando a gente pára pra ver que é antigo o fogo no rabo do Space Karen de colocar X em tudo, só piora a tentativa de ver seriedade e futuro nessa mudança do Twitter para um “app de tudo” nos moldes do chinês WeChat que nem a atual CEO sabe explicar direito. Essa é a ideia de mudar de Twitter pra X; se vai dar certo, bem…
Outra que causou certo alvoroço foi a da Nokia. Uma arquitetura de marcas bem pensada reduz a dificuldade de entender o tamanho de certas organizações, colocando cada operação no lugar certo. Quando falamos da Nokia, falamos tanto da marca dos celulares, quanto de uma organização que fabrica infra-estrutura de telecomunicações e é dona da prestigiada Bell Labs. Aliás, a Nokia dos celulares nem pertence mais à Nokia, mas sim à HMD Global, que licencia a marca para novos aparelhos. Se você entendeu essa bagunça, entendeu também a necessidade de uma nova marca para a Nokia — a de infra-estrutura, não a de celulares. Dessa forma, ela comunica-se com outras empresas e governos com maior clareza, e distancia-se da Nokia… agora sim, a de celulares.
Claro que veio o terror; primeiro, pelo medo de ver uma marca clássica se perder — o que, com duas linhas de press-release, já dava pra entender que não aconteceria. Segundo, porque lendo ao pé da letra as formas do logotipo, a leitura fica algo como AOCIA, sem a haste direita do N e esquerda do K. A gente pode apelar para os princípios de continuidade e proximidade da gestalt para pensar nas laterais da letra O funcionando como as hastes em falta, e conectando-as. No fim das contas, sendo uma marca não destinada a consuidores finais, dificilmente alguém lerá o logotipo como AOCIA.
A fabricante coreana Kia, contudo, não teve a mesma sorte, com consumidores finais lendo seu novo logotipo para um mundo de automobilidade eletrificada como KN. É legal o efeito sinuoso que existe entre a haste e uma das pernas do K, o I e as hastes do A, passa a impressão de uma corrente elétrica, uma onda ou algo dinâmico, mas a perna inferior do K destoa desse conceito e faz com que o resultado final careça de mais ajustes. A mudança progressiva para automóveis elétricos fez muitas montadoras se reposicionarem e mudarem suas marcas, cada uma de acordo com o que quer projetar para o futuro. Só que a questão do carro elétrico é tão complicada que essas mudanças feitas por Kia, Renault, Volvo, Nissan, Citröen, Cadillac, Volskwagen, Infiniti, Peugeot, Skoda e outras, acabam entendidas como greenwashing. Nenhuma delas abandonou definitivamente os motores a combustão, e os motores elétricos, dependentes do impacto ambiental da extração de lítio e outros metais raros, ainda não são uma completa unanimidade. Junte esse ceticismo com um logotipo estranho, e eis a receita para uma série de reações negativas.
Um rebranding que até comentei na época do anúncio foi o da Pepsi. A graça de entender as mudanças de marca da Pepsi não está nos resultados finais de símbolos e logotipos, mas sim em entender que nenhuma delas será pra sempre porque nenhuma geração é igual à outra. “Ah Cadu, então pra cada nova safra de adolescentes, a Pepsi vai mudar a marca?” Sim. Vai. Isso parece ir contra o que se ensina na faculdade sobre branding e identidade visual, e aquele comparativo das dezenas de assinaturas da Pepsi ao longo dos anos com a da Coca-Cola mantendo-se mais ou menos a mesma mostra o quanto esse discurso geracional da Pepsi é pouco compreendido. Só que a marca da Pepsi não é apenas a identidade visual do momento; mudar de tempos em tempos também faz parte da marca da Pepsi.
O logotipo novo tem uma cara nostálgica, comparada com as dos anos 90, 2000 e aquela última baseada em… alguma coisa muito doida (obrigado pela referência, Alvaro!). Alguns terminais tem ângulos similares nos terminais e pontas de hastes, conferindo uma certa harmonia ao conjunto. Mas já adianto: não vai durar pra sempre. Se bem que, depois da Johnson&Johnson aposentar um logotipo de 135 anos, talvez nada seja pra sempre mesmo. Sim, falando de J&J, que aí sim teve lágrimas de despedida de gerações cuidadas pelos xampus e talcos da marca. Foi impressinante ver uma assinatura cursiva durar todo esse tempo e não envelhecer, mas não resistir à reestruturação interna da empresa, que deixou o nome Johnson&Johnson para equipamentos médicos e medicina avançada. Os produtos do dia-a-dia ficaram com a Kenvue, que logo colocará sua marca no lugar da J&J.
Então, vem o dilema: será que as pessoas associam a Johnson&Johnson do talco para bebês com a Johnson&Johnson das pesquisas para reduzir a incidência de mal de Alzheimer e da robotização de cirurgias médicas? Cada um terá a sua resposta, mas o caminho da J&J foi, com um logotipo mais sério e convencional, tentar mostrar-se mais séria e convencional. Branding e design não são ciências exatas, não vão apontar uma responsa unânime pra tudo, e nada impede a J&J de voltar para a assinatura antiga, mas é importante entender o contexto. Mudanças de marca não surgem espontaneamente; elas são provocadas por uma resposta à ação do tempo ou alguma reordenação interna. O logotipo novo é sem graça? Digamos que sim. Bem construído, mas sim. É sisudo? Sim. Responde ao dilema da J&J? Provavelmente sim. Era a única resposta possível? Não.
É possível que você chegue ao fim dessa edição discordando dela, o que é normal. Tem esse negócio capitalista de fetichização, que faz a gente entender marcas quase no mesmo nível que entendemos pessoas (e é difícil entender pessoas), até que elas comecem a adquirir personalidades cringes nas redes sociais e a gente seja obrigado a gritar SILENCE BRAND!! Se tem uma coisa que espero que você entenda, em algum grau, é a frase-título dessa edição, que diz respeito à necessidade dos logotipos serem super-legíveis e afeitos às memórias que criamos com ela ao longo da vida: não é pra ler, é pra sentir.
Recomendações:
🎧 Podcast: Braincast #512, Carlos Merigo, Bia Fiorotto, Oga Mendonça e Luiz Hygino discutindo erros e acertos do marketing das marcas ao comunicarem-se nas redes sociais.
🎥 Vídeo: The Gestalt Principles | Basics for Beginners, (em inglês) uma introdução aos princípios da gestalt para a leitura e entendimento de formas bidimensionais e tridimensionais.
🔗 Link: Brandcooker, uma ferramenta para criar briefings de logotipos para exercício de criação de marcas, desenvolvido pela Plau e por este que vos escreve. ;)
🇧🇷 Fonte brazuca: Passo, de Ana Laydner, Henrique Beier, Eduilson Coan e Fabio Haag.
Escrito em 101341.89
Fiquei chocada com todas as atualizações, rs. Nem sei opinar, só sentir 😅
Como pessoa de área completamente diferente, eu nunca tinha parado pra pensar nessa questão da evolução das marcas. Muito interessante.