Tipo Aquilo #70 — Sobre povos indígenas e máquinas de escrever
Uma breve história do estudo e registro das línguas dos povos originários
Esta edição baseia-se na tese de doutorado do Prof. Dr. Rafael Dietzsch, “A tipografia das línguas indígenas brasileiras”, defendida em 2021.
Tal como o avião, a chave inglesa e o telefone, a máquina de escrever é uma invenção com origem disputada entre vários páises. Tem um ancestral italiano datado de 1575, e desde o séc. XVIII patentes e protótipos de dispositivos que mecanizam a escrita apareceram também no Reino Unido, França, Estados Unidos e na Áustria, e até o Brasil tem sua participação com um protótipo desenvolvido pelo padre Francisco João de Azevedo em 1861. Certa, contudo, é a onipresença do “claqueado” das hastes pressionando as fitas de tinta contra o papel nos escritórios até a década de 1980, e a sensação nostálgica que esse barulho traz, junto com o sino e o cilindro retornando para o ponto inicial.
A miniaturização e portabilidade das máquinas de escrever, além de proporcionar cenas com escritores e roteiristas atormentados em seus quartos com fumaça de cigarro e barulhos de teclas imprimindo ideias tortas, fez delas portáteis o suficiente para viajar o mundo, sendo instrumento de pesquisadores no estudo e catalogação de línguas em regiões remotas. No Brasil, as máquinas de escrever colaboraram para o registro de línguas de povos originários, deixando uma série de vestígios interessantes para uma reflexão sobre como entendemos a predominância da língua portuguesa no país e da busca por uma tecnologia tipográfica que contemple as necessidades de todas as línguas existentes.
O estudo das línguas dos povos originários no Brasil e na América tem uma série de avanços e retrocessos desde a chegada dos colonizadores europeus. Se, por um lado, as missões jesuíticas ajudaram a decodificar e registrar a estrutura de centenas de línguas faladas na América pré-colonial — com o intuito de facilitar a catequização destes povos —, por outro, vários desses registros e dezenas de artefatos destes mesmos povos foram destruídos sob a justificativa de serem “coisas do demônio”. Isso reflete a história da política indigenista na América, com uma série de pequenos avanços e consolidação de direitos dos povos originários ante a dominação colonial, perdas de territórios e apagamento de suas histórias.
As línguas ameríndias, em geral, eram ágrafas, sem um sistema de escrita correspondente — até o momento, apenas a civilização maia teve um sistema de escrita hieroglífica descoberto. No Brasil colonial o estudo das línguas dos povos indígenas tinha como grande complicador a proibição de prensas tipográficas. Sob a desculpa de que ter uma tipografia na colônia faria com que informações importantes sobre o Brasil vazassem para outras nações, todas as publicações, incluindo sobre línguas indígenas, eram impressas na metrópole ou em algum de seus vizinhos, como a França. Contudo, desde a fuga da família real portuguesa para o Brasil, os eventos históricos finalmente permitiram a instalação de oficinas tipográficas e a produção local de conhecimento acerca das línguas dos povos originários.
Hoje, são conhecidas 274 línguas indígenas usadas por povos de 305 etnias diferentes apenas em solo brasileiro, de acordo com o último censo demográfico de 2010 do IBGE. Estima-se, no entanto, que em torno de 1200 línguas eram faladas por povos nativos do Brasil antes da colonização. As similaridades na estrutura de algumas dessas línguas fazem com que sejam agrupadas em famílias, sendo 43 famílias linguísticas dos povos indígenas; algumas destas são também agrupadas em troncos, como o Tupi. É importante notar, contudo, que apenas a partir do séc. XIX esses estudos de línguas de povos ameríndios passam a ser feitos também por naturalistas e antropólogos, reduzindo o caráter amador esses estudos e registros que permitem-nos ter dados mais precisos sobre o uso dessas línguas na América.
No Brasil, essa abordagem científica no estudo das línguas indígenas tem início entre 1884 e 1887, com as expedições do antropólogo alemão Karl von den Steinen às cabeceiras do rio Xingu, cujo êxito motivou a vinda de outros pesquisadores e uma profissionalização do estudo dessas línguas, consolidada nos anos 1950. As línguas que continham maior quantidade de sons e fonemas sem correspondentes diretos no alfabeto latino tradicional passaram a ter maior atenção também, colocando pesquisadores na difícil tarefa de representar graficamente a fonética dessas línguas e buscar tecnologias para reproduzi-las. Eis que aparece, para ajudar nestas tarefas, as saudosas máquinas de escrever.
Estender o alfabeto para além do básico A → Z sempre foi complicado em línguas que usam sinais diacríticos, o que fez com que a demanda por letras e sinais específicos em línguas indígenas fosse negligenciada. No entanto, as máquinas de escrever permitiam, de forma simples, atribuir diacríticos comuns a praticamente qualquer letra. Além dos acentos, outros sinais gráficos como hífen e vírgula eram utilizados junto com as letras tradicionais para criar novos caracteres e atender às demandas de línguas mais complexas. Bastava ao operador digitar uma letra, voltar um espaço e imprimir sobre a letra previamente digitada um novo sinal, como um acento, hífen, vírgula, til ou trema. No caso da língua Mundurukú, cuja ortografia foi criada numa máquina de escrever IBM Selectric, a “bola de golfe” usada como fonte das letras teve algumas letras substituídas à mão por caracteres presentes na língua, como o G com til.
O uso de sinais diacríticos, combinados às letras tradicionais, foi vital para a sobrevivência do alfabeto latino em países cujas línguas mais faladas não tinham caracteres suficientes para todos os seus sons. Novas línguas ainda são descobertas ao redor do mundo, e para atender a demanda dessas línguas, o consórcio Unicode recomenda que, caso essas línguas não tenham uma escrita própria, suas ortografias contemplem caracteres já presentes nos escopos do padrão criado pelo consórcio. As ortografias de algumas das línguas dos povos originários brasileiros utilizam caracteres relativamente simples de serem produzidas com máquinas de escrever, mas tendo sido feitas antes mesmo da existência do Unicode, não atendem à recomendação e não podem simplesmente serem refeitas do dia para a noite.
Se, por um lado, isso demonstra a influência das máquinas de escrever no estudo e registro de línguas indígenas, por outro esses caracteres inexistentes no Unicode tornam-se um problema para a criação de fontes digitais e peças gráficas para línguas como o Yanomami, Tuyuka, Tukano, Wauja e muitas outras cujas ortografias precedem a adoção do computador como ferramenta de trabalho. Esses caracteres utilizam apenas os diacríticos já comuns na língua portuguesa e presentes nas máquinas de escrever feitas para o mercado nacional, o que mostra a inexistência nestas línguas de sinais como o caron (č), ogonek (ų) ou ring (å), ausentes do português. Lembre-se disso quando, por acaso, você cair em alguma conversa sobre cultura e tecnologia e alguém disser que estas não dependem uma da outra.
A ausência de caracteres não é o único problema para o uso de línguas indígenas no computador. Sem ferramentas de software, como layouts específicos de teclado, gerar caracteres como o E com til (ẽ), Y com acento grave (Ỳ) ou U com til (Ũ) pelo teclado é impraticável. Isso reflete-se nos materiais didáticos feitos para estas línguas, em que são comuns o uso de gambiarras para enxertar diacríticos em letras. O mais comum é digitar os caracteres separadamente (por exemplo, I˜
) e reduzir o tracking entre eles até que sobreponham-se (formando o Ĩ). O uso de estilos sublinhado e tachado ajuda a mitigar o inacesso a caracteres com barras, apesar destas não se adequarem às medidas dos caracteres originais neste caso. Em sua tese, o prof. Dietzsch propõe o uso de um layout de teclado que facilita o acesso a caracteres que estejam presentes no Unicode.
Apesar destes desafios, a preservação destas línguas e da cultura das nações indígenas constitui uma necessidade para o Brasil. A política indigenista brasileira é cruel com os povos originários desde a colonização do território, e o recrudescimento visto nos últimos quatro anos a ponto de provocar uma crise humanitária dos Yanomamis facilmente tipificável como genocídio reflete um descaso histórico com os povos indígenas. A inventividade de linguistas ao extrair das máquinas de escrever tudo que podiam para criar ortografias de línguas indígenas incentiva-nos a ver a tecnologia como um instrumento para preservar o futuro destes povos, ao invés de ameaçar sua existência.
Recomendações
🎧 Podcast: O Assunto #900, com Natuza Nery desvendando o caminho da mineração ilegal em território Yanomami e as ações de generais e garimpeiros que levaram à crise humanitária local.
🎥 Vídeo: TypeTech MeetUp, (em inglês) uma apresentação do Prof. Rafael Dietzsch sobre sua tese de douturado, tema desta edição.
🔗 Link: O Brasil Indígena – IBGE, a compilação de dados do último censo demográfico brasileiro de 2010 com temática voltada às especificidades dos povos indígenas.
🇧🇷 Fonte brazuca: Oniresi, de B. Benedicto.
Escrito em 100819.43