Pra fechar o ano, peço vênia a você que admira tipografia pelos atributos estéticos de fontes que fazem da leitura um prazer intelectual e tem suas famílias tipográficas de estimação. Eu também sou admirador assim, mas falar de tipografia também exige de nós lembrar que aquela prensa que Gutenberg construiu em Mainz fez mais do que, cinco séculos depois, colocar uma gaveta de fontes para decidirmos qual roupa vestirá nossas ideias. Instrumentalizar e “industrializar” a escrita a ponto de reduzir o tempo que um livro demora para ficar pronto de anos para meses, e com o tempo, semanas e até alguns dias: essa sim é a grande beleza e maldição que a tipografia trouxe para o mundo, uma grande revolução cultural e quizaz industrial.
É sob o prisma da tipografia como parte de uma “indústria” de escrita que eu acho que vale a pena fazer a nota de fechamento da lojinha para 2022. Uma nova revolução da escrita está acontecendo, e dessa vez, não se trata do quão rápido alguém ou algo pode diagramar texto numa superfície: falamos agora da parte criativa da escrita sendo feita por máquinas e inteligências artificiais de forma realmente satisfatória, quase mágica e que fazem finalmente descansar em paz o espírito da falecida Microsoft Tay, atormentada por uma legião de incels em sua breve existência. Antes de fechar o ano, vamos a algumas reflexões e conjecturas malucas deste que vos escreve (de verdade, eu juro) sobre IA’s escritoras e a influência delas no nosso lado, das formas das letras, incluindo algumas fontes que mostram alguns desses caminhos abertos.
A grande vitrine da inteligência artificial, há alguns anos, foi os deep fakes. A possibilidade de produzir vozes e expressões faciais de outras pessoas com o auxílio de redes neurais foi um grande pesadelo de políticos e sociólogos. Agora, a estrela é a criação de imagens no DALL-E, Midjourney e Stable Diffusion. Em novembro e dezembro, o aplicativo Lensa faturou metade dos US$ 16 milhões de faturamento deste ano oferecendo pacotes de ilustrações de seus usuários geradas por IA por alguns dólares, enquanto tudo que o app precisava era de algumas fotos e preferências da pessoa como insumos.
Correndo por fora, a criação de texto por redes neurais, como o GPT, atingiu uma maturidade nos últimos meses, já conseguindo enganar surpreender muita gente e escrever textos com mais coerência e profundidade que muito ser humano. Ao contrário das imagens, geralmente fáceis de identificar IA’s como autoras, os textos criados por redes neurais já são bons o suficiente até para escreverem artigos no The Guardian (embora um leitor do Telegraph espezinhe que não precisa ser grande coisa para escrever no Guardian). Isso é muito promissor para diversas áreas, reforça aquele discurso de que os seres humanos terão mais tempo para serem criativos, e tem uma forte voz entre as tendências de tipografia e design gráfico para o próximo ano.
Não sei se vocês repararam, mas as fontes com serifas têm tido maior preferência entre diretores de arte e o público em geral. Fontes que exageram certos aspectos de tipos serifados transicionais, como a Times, e didones (Didot e Bodoni), têm aparecido constantemente nas timelines, stories e outras plataformas de anúncios, e evocam sensações de nostalgia, autenticidade e até de espontaneidade. São uma fonte de “calor humano” ante as fontes sem serifas, geométricas ou humanistas, que representam as big techs e toda sorte de imoralidades que elas têm praticado. Num mundo pouco preparado pra saber se um parágrafo foi escrito por um jornalista profissional, o GPT ou alguém lucrando com fake news, fontes como a Baskerville trazem uma certa credibilidade.
Outra coisa interessante é sobre como nós colocamo-nos ante as inteligências artificiais tentando, em sua ingenuidade, reproduzir o pensamento humano da forma mais “realista” possível. Nós tendemos a fazer pastiches do universo da tecnologia digital emulando alguns aspectos da informática “primitiva” usando de fontes mono-espaçadas, modulares e/ou que apelam para uma estética retrofuturista, ajudando a construir pontes (dsclp) para entender a IA e outras modernidades, como criptomoedas, NFT, metaversos e outros brinquedos de bilionários. Além disso, a busca por perfeição das máquinas faz com que nós busquemos o que elas ainda têm dificuldade para reproduzir: as imperfeições gráficas que os humanos fazem, valorizando o acabamento desajeitado como uma expressão de ingenuidade; e, no caminho oposto, o refinamento “maximalista” que nos afasta da frieza técnica.
Essas e outras tendências para a tipografia busca compensar a “autenticidade”, a certeza que o leitor costumava ter de que, do outro lado da mensagem, existia um ser humano amparado em argumentos. Por ora, tecnologias como o GPT ainda são entendidas como um auxílio para redatores, copywriters e outros quem têm a escrita como profissão, afastando a visão apocalíptica de que máquinas sejam responsáveis por todos os textos do mundo. Quem nunca mudou alguma palavra ouvindo conselho de análise e interpretação de texto do Grammarly ou da Clarice, por exemplo? Para certos trabalhos, redes neurais como o Fontjoy ou o Font Map do Ideo poupam um bom tempo ao sugerir pares de fontes com mais chances de darem certo, e IA's como o FontMART podem sugerir fontes de acordo com as necessidades dos leitores.
Talvez a gente não fique mais tão assustado com a presença de inteligências artificais no cotidiano porque o mundo já ficou caótico demais para que isso seja o maior dos problemas, ou já aprendemos que os futuros distópicos estão mais relacionados com os problemas da sociedade e o capitalismo tardio do que com máquinas sedentas por vingança. É mais provável que uma IA mal treinada, ao invés de um espírito maligno saído de algum episódio de Black Mirror, seja apenas uma cabeça tão vazia, inautêntica e dispensável quanto um Gerador de Lero-lero. Se a tipografia pode oferecer autenticidade em forma, o leitor ainda estará ávido por autenticidade em conteúdo, pela sensibilidade e pelo tipo de informação que depende de algo que apenas uma consciência é capaz de entregar.
Recomendações
🎧 Podcast: Braincast #473, com Carlos Merigo, Cris Dias, Johnny Brito e Oga Mendonça discutindo sobre a presença de IA’s no dia-a-dia de artistas e produtores gráficos.
🎥 Vídeo: Peixe Babel – Limites da Inteligência Artificial, uma conversa sobre o futuro das profissões criativas com o auxílio de IA’s.
🔗 Link: ChatGPT, uma plataforma de conversação com o GPT, da OpenAI. Aliás, vale um link extra para a criação de experimentos tipográficos e novas fontes da Zeta Fonts.
🇧🇷 Fonte brazuca: Juma, de Cyla Costa.
Nota do editor
Essa edição foi mais curta porque eu não queria que faltasse espaço para dois exercícios anuais obrigatórios do Tipo Aquilo. O primeiro é expressar o quanto eu, Cadu, me sinto grato e honrado por cada um de vocês que lê, compartilha e responde sobre as abobrinhas que vocês lêem aqui ao longo de 17 edições, 25.610 palavras e uma mudança de país neste ano. Tem algumas coisas novas que eu quero testar para o ano que vem, que manterão a newsletter mais regular em 2023 sem perder conteúdo. Por ora, para cada um dos quase 300 inscritos, meu mais sincero muito obrigado. (=
Antes do segundo exercício, quero agradecer à Jess Silva e aos lindos do DiaTipo deste ano, por ajudarem a trazer de volta este evento maravilhoso em sua forma presencial, e colocarem minha humilde Grotesca Reforma na identidade visual. Isto fica feliz em ser útil. ;)
Não posso encerrar o ano sem prestar a devida homenagem a Rodolfo Capeto (1956—2022), designer, professor da ESDI e diretor da instituição de 2008 a 2016, conselheiro editorial da Cosac Naify e uma grande referência de produção de fontes tipográficas e a formação de centenas de designers gráficos com um olhar mais apurado para o estudo das letras.
Por fim, a newsletter sempre busca uma imagem representativa em que a tipografia ajuda a contar e relembrar o ano que passou. Embora 2022 tenha trazido a alegria de ver Bozo derrotado nas urnas (tal qual nunca deixou de ser um perdedor na vida), ela veio ao custo de muitos que não devem ser esquecidos, como Bruno Pereira, Dom Philips e — compartilhado por milhares de pessoas — Moïse Mugenyi Kabagambe.
No mais, muito obrigado novamente, e nos vemos em março. (=
Escrito em 100586.53