Até hoje, só quatro países ousaram receber edições seguidas de Copa do Mundo e Olimpíadas. Como você pode imaginar, organizar os dois maiores eventos esportivos do mundo num espaço de tempo tão curto e lidar com duas organizações esportivas que se odeiam exige grandes doses de paciência e uma economia capaz de suportar os investimentos em infra-estrutura esportiva. A Alemanha sediou as Olimpíadas de Verão de 1972 em Munique e a Copa do Mundo de 1974, sendo campeã em casa e fazendo dessa dobradinha de eventos uma vitrine da capitalista Alemanha Ocidental. Em 1994, os Estados Unidos receberam a Copa do Mundo do tetracampeonato brasileiro e, em 1996, as Olimpíadas de Verão em Atlanta, Geórgia. O Brasil também entra nessa estatística, recebendo um 7 a 1 a Copa em 2014 e as Olimpíadas de Verão em 2016 após uma década de crescimento econômico e o início de uma convulsão social que dura até hoje.
Contudo, nesses três casos, houve uma preocupação em estabelecer identidades visuais distintas para cada evento. O único caso em que uma mesma marca foi usada nas Olimpíadas de Verão e na Copa do Mundo foi no México, em 1968 e 1970. A célebre marca é um ícone do design gráfico, ostentando até hoje a importância que teve para o esporte e a cultura mundial. Falar dessa marca evoca também uma história de disputa de autoria, convulsão social e momentos icônicos do esporte. Então, já que estamos em clima de Copa do Mundo, o Tipo Aquilo de hoje aborda um pouco da história do logotipo que deu cara e tom às Olimpíadas de Verão da Cidade do México de 1968 e à Copa do Mundo de 1970.
A princípio, as jornadas de 2013 parecem uma certa repetição do Movimento Estudantil de 1968 no México: pessoas indo às ruas protestar contra um governo moralmente questionável que esbanjava dinheiro em obras para grandes eventos. Para o bem dos menos atentos, as semelhanças acabam aí. No México de 1968, o buraco era mais profundo: desde 1929 o país vivia com o PRI (Partido Revolucionário Institucional) ininterruptamente no poder. A exemplo de vários países da América Latina, o México tornava-se mais autoritário, sob influência da política anticomunista dos EUA, vivendo entre as décadas de 1960 a 1980 as chamadas Guerras Sucias: com o pretexto de deter o narcotráfico, as forças militares mexicanas agiram com força contra grupos guerrilheiros e movimentos de esquerda, incluindo prisões arbitrárias e execuções sumárias.
Contudo, o país vivia um franco crescimento econômico desde os anos 1940, em que a estabilidade política oferecida pelo PRI, investimentos maciços em urbanização e industrialização do México e absorção de unidades fabris de empresas americanas levaram ao chamado “milagre mexicano” (é, crianças, nada se cria), que ajudou a desenvolver a economia mexicana, mas ampliou a desigualdade entre as áreas rurais e os centros urbanos. Como vitrine de um modelo econômico que ostentava um crescimento médio de 4% ao ano, no início da década de 1960, o governo mexicano postulou suas candidaturas aos maiores eventos esportivos. Em 1963, a candidatura da Cidade do México venceu Detroit, Lyon e Buenos Aires; no ano seguinte, os mexicanos derrotaram mais uma candidatura argentina, dessa vez na FIFA.
Ante o desafio de mostrar o país como uma economia sólida e uma população vibrante e unida em prol das Olimpíadas, o arquiteto Pedro Ramírez Vásquez foi escolhido como presidente do comitê organizador dos Jogos Olímpicos. Vásquez tinha em seu portfolio o Estadio Azteca e o Museu Nacional de Antropologia da Cidade do México; para desenvolver o sistema de design gráfico e identidade visual dos jogos, tinha ao seu lado os arquitetos Eduardo Terrazas e Manuel Villazón, e a designer inglesa Beatrice Trueblood, que havia trabalhado com Ramírez editando publicações do Museu de Antropologia. Junto a estes, somaram-se os designers e sócios Peter Murdoch e Lance Wyman, uma estrela ascendente que havia trabalhando na divulgação dos EUA projetando pavilhões do país em exposições internacionais, e que conseguiu a confiança de Terrazas e Trueblood.
Wyman, pouco letrado sobre a cultura mexicana, ambientou-se rapidamente no país e, junto com a equipe, ajudou a desenvolver o sistema de identidade visual de eventos esportivos mais robusto até então. O desafio de conceber um símbolo que projetasse a história, cultura e identidade mexicana para o mundo encontrou uma resposta singela em um dos vários rabiscos de Vásquez, segundo Beatrice. Um desses rascunhos trazia os números 6 e 8 com suas contra-formas formando dois dos três anéis olímpicos, e logo o rascunho tornou-se um dos emblemas mais memoráveis da história do esporte. A feliz coincidência entre os anéis olímpicos e as formas redondas dos números foi transformada em uma marca que, sob o espírito de seu tempo, conjugava a geometria, a op art, a arte mexicana pré-hispânica e os padrões visuais dos Huichol em um sistema vibrante e colorido, que afastava o país de estereótipos e inseria-o numa cultura visual moderna com um logotipo memorável.
Enquanto os pictogramas tinham um papel fundamental nas Olimpíadas de Verão de Tokyo, em 1964, de auxiliar na comunicação e localização de atletas, voluntários, comissários e o público internacional num país com língua e escrita próprias, a equipe de Ramírez deu um passo além, reinterpretando-os de acordo com a cultura mexicana e dando destaque aos artefatos e partes do corpo mais proeminentes de cada esporte. Wyman encontrou terreno fértil na programação visual dos Jogos Olímpicos para projetar pictogramas, selos, vestuário, wayfinding e dezenas de outras aplicações que tornaram-no célebre o suficiente para ser confundido, por várias vezes, como autor da marca. Além das Olimpíadas, Wyman fez diversos trabalhos como designer no México, destacando-se a identidade visual e sistema de wayfinding do Metrô da Cidade do México.
O trabalho brilhante de Wyman, Ramírez, Trueblood e os demais designers e arquitetos resultou numa identidade visual celebrada até hoje, sendo uma das grandes memórias dos Jogos Olímpicos. Somam-se a essa memória a primeira transmissão ao vivo em cores das Olimpíadas; a tocha olímpica refazendo o caminho de Colombo até a descoberta da América; os punhos em riste dos atletas afro-americanos Tommie Smith e John Carlos em protesto pela discriminação racial nos EUA; a cabeça baixa da ginasta Věra Čáslavská em protesto contra a invasão da Tchecoslováquia pela União Soviética; e o triste episódio do massacre de Tlatelolco, em que de 300 a 400 manifestantes foram executados pelo governo e mais de mil pessoas foram presas, ocorrido a apenas dez dias da abertura dos Jogos Olímpicos, até então promovidos como “Los juegos de la Paz”.
Para a Copa do Mundo de Futebol, a Fifa passou a assumir a criação das identidades visuais de seus eventos a partir de 1970. A primeira transmissão global do evento também teve um novo elemento de destaque: a Telstar. A bola projetada pela Adidas, maior símbolo do futebol até hoje, trouxe como novidade o uso das cores preto e branco, que tornava a bola facilmente identificável em transmissões em cinza, comparada com as bolas marrons das copas anteriores. Como uma homenagem ao trabalho de design criado para os Jogos Olímpicos de 68, a Copa do Mundo em que o Brasil sagrou-se tricampeão e dono definitivo da taça Jules Rimet trouxe como identidade visual uma simplificação do desenho da Telstar junto com o logotipo dos Jogos Olímpicos adaptado para o ano de 1970, sendo a única vez em que um único símbolo foi usado nos dois eventos.
A Copa do Mundo de 1970 trouxe outras novidades, como a substituição de jogadores, os cartões amarelo e vermelho e os álbuns licenciados de figurinhas de jogadores. O México recebeu mais uma Copa do Mundo em 1986 (no lugar da Colômbia), tendo sua identidade visual pouco lembrada em relação à sua antecessora, e receberá o evento novamente em 2026, junto com EUA e Canadá. O Estadio Azteca, palco do jogo final e criação de Ramírez Vásquez, tornou-se um templo do futebol, e o trabalho de sua equipe ajudou a definir uma identidade visual para o esporte, como um todo, com o uso de linhas paralelas tornando-se um clichê para representar competições e esportividade. Embora a realização dos jogos de 1968 tenham custado a vida de centenas de estudantes, a força que o símbolo dos Jogos Olímpicos de 1968 tem, ao afastar-se dos estereótipos e lugares comuns sobre a história do México, faz com que ele marque o momento do país e seja reverenciado e revisitado até hoje.
Recomendações
🎧 Podcast: Fronteiras Invisíveis do Futebol #69 e #70, com Matias Pinto e Filipe Figueiredo discorrendo sobre a história do México.
🎥 Vídeo: México 1968 – Design Focus (em inglês), um pedaço da série feita pelo COI sobre as identidades visuais de cada edição dos jogos olímpicos.
🔗 Link: The Olympic Museum, um passeio por fotos da época dos jogos olímpicos de 1968 e pelo seu sistema de identidade visual.
🇧🇷 Fonte brazuca: Wim Pro, de Rafael Nascimento.
Escrito em 100507.64