Tipo Aquilo #66 – UX e o gosto do freguês
Quando as fontes preferidas das pessoas nem sempre são as melhores
Faz pouco mais de dois meses que Bert Hubert colocou na Internet uma ferramenta que faz o computador emitir um bip a cada vez que envia informação para o Google. O post oficial dessa ferramenta mostra uma demonstração com uma página de anúncios de empregos do governo norueguês, com alguns bips em botões específicos e controles de navegação. Em sites como Daily Mail, The Telegraph, entre outros, a navegação vira uma experiência barulhenta, vide o volume de dados enviados por trackers que analisam seu comportamento e mensuram suas escolhas para que (na teoria) esses portais ofereçam melhores experiências de navegação, consumo e descoberta. Vale a pena parar a leitura aqui e assistir essa experiência tétrica.
Pode ir, vai ser divertido. Eu espero. ;)
Dos maiores aos menores e-commerces, tudo é testado e mensurado o tempo todo: “que tipo de botão gera mais vendas?“, “qual mensagem inicial gera maior engajamento?”, “qual é o caminho mais percorrido pelo usuário até ele fazer uma compra?” são perguntas que ferramentas como o Google Analytics e serviços de testes A/B ajudam a responder. Para a alegria dos growth hackers, é possível testar tudo, desde cores de botões a mensagens, alinhamento, imagens… mas e fontes? Será que vale a pena testa-las, ou mesmo perguntar para o usuário o que ele prefere em termos de tipografia? Se perguntarmos, nós teremos boas respostas? Essas e outras perguntas (talvez não) serão respondidas no Tipo Aquilo de hoje, quando eu tomo minha licença anual de falar um pouco de UX por aqui. (=
Dentro de um sistema de design (não estou falando necessariamente de design system) bem resolvido, as variáveis de tipografia que podem ser testadas são poucas; geralmente são tamanho, peso e uso de maiúsculas vs. minúsculas. As famílias tipográficas são definidas pela identidade visual e, por meio das webfonts, aplicadas em um site sem muita dificuldade. Contudo, essas poucas variáveis são testadas a fio, já que são fáceis de ser mensuradas e podem fazer a diferença entre uma compra feita ou perdida. Apesar da literatura existente sobre tipografia, testar e analisar o contexto é o melhor caminho para, por exemplo, saber se um botão COMPRAR funciona melhor que um botão Comprar.
Agora, imagine que você tivesse a missão de escolher uma entre um grupo de famílias tipográficas perguntando a vários usuários quais fontes eles preferem, tendo a chance de analisar a velocidade de leitura de cada pessoa lendo textos semelhantes com fontes diferentes. O ponto inicial deste texto é um artigo recente do NNg acerca de legibilidade em dispositivos conectados à Internet, como notebooks e smartphones, e quais são as melhores fontes para estes aparatos. O artigo aborda uma pesquisa por Wallace et al (2022) em que várias famílias tipográficas convencionais foram submetidas a testes com 352 pessoas. Algumas delas fazem parte daquelas fontes voltadas para a web, que eu já contei a história delas na edição #56; outras são “clássicos” da tipografia, como Times New Roman e Helvetica; e a lista fecha com casos de sucesso do Google Fonts, com bilhões de impressões desde quando foram lançadas, como Montserrat e Roboto.
Vamos à metodologia usada na pesquisa: os 352 participantes, de idades entre 18 e 71, leram cinco textos de baixa complexidade (com 300 a 500 palavras) em monitores convencionais, mostradas por um aplicativo específico para a pesquisa. Os participantes foram submetidos a um teste ao final da leitura, para se ter certeza de que os textos foram inteiramente lidos e compreendidos. As principais métricas coletadas foram:
De qual fonte a pessoa mais gostou? (preferência subjetiva)
Quantas palavras a pessoa leu por minuto? (velocidade linear)
O quanto a pessoa entendeu do texto? (avaliação do teste)
A princípio, parece estranho haver espaço na pesquisa para uma “fonte preferida” da pessoa. Vale lembrar que legibilidade não se trata apenas de um fenômeno sensorial (como as letras são vistas), mas também mental (como as letras e espaços são decodificados e processados em palavras) e cultural (quais são os signos e o modo de uso deles). Faz sentido que a fonte preferida de uma pessoa seja a que ela tem maior familiaridade e rapidez para decodificar… certo?
A taxa de acerto dos testes de compreensão, de 90% em média, indica um entendimento pleno de cada texto (voltaremos a isso mais tarde) e coloca, na pesquisa, a tipografia utilizada como fator principal para a velocidade de leitura. Nos casos mais extremos, a escolha de fontes provocou até 35% de diferença de velocidade de leitura. É interessante e assombroso que, dentre 16 fontes usadas em texto, uma escolha tipográfica faça com que uma pessoa leia até 35% mais rápido; isso faz, por exemplo, um texto ser lido em 3 minutos com uma fonte e pouco menos de 2 minutos com outra. Leve em consideração que a pesquisa utilizou apenas fontes “convencionais”, como fontes sans serif e serifadas presentes no cotidiano, excluindo tipos cursivos e manuscritos. No entanto, outro achado da pesquisa foi que, quando falamos da fonte de leitura mais rápida de cada pessoa, não estamos falando necessariamente da fonte favorita.
Num universo de fontes voltadas para texto, incluindo fontes projetadas para leitura em telas digitais, a Garamond ofereceu a maior velocidade de leitura média (312 palavras por minuto). Contudo, enquanto a Franklin Gothic foi escolhida pelos participantes na maioria das vezes (59%) como a fonte que oferecia leitura mais rápida, os textos compostos com a Poynter Gothic atingiram taxas maiores de compreensão (95%), e a Noto Sans e Times New Roman foram tidas como preferidas pela maioria dos participantes (52 votos para cada uma). As fontes escolhidas como preferidas por cada participante nem sempre foram as que tiveram maiores velocidades de leitura, sendo até 20% mais rápidas em certas ocasiões e 20% mais lentas em outras. Talvez você esteja pensando se, no fim das contas, alguma fonte se saiu melhor e será a resposta para a vida, o universo e tudo mais.
Segundo a pesquisa e o artigo da NNg… nenhuma delas. Para pessoas idosas, talvez Montserrat e Garamond ofereçam leituras mais rápidas; neste grupo, aliás, as escolhas de tipografia tendem a fazer mais diferença em velocidade de leitura. Contudo, ter familiaridade com uma fonte representou um ganho muito pequeno em velocidade de leitura, e a fonte preferida de cada sujeito nem sempre indicou uma leitura mais rápida. Essa conclusão parece desanimadora, mas indica a web e os dispositivos eletrônicos como um terreno fértil para que mais fontes sejam produzidas e utilizadas no dia-a-dia. Outro ponto interessante é a maturidade das telas desses dispositivos, que reproduzem com boa fidelidade e nitidez uma fonte como a Garamond, reduzindo a dependência das safe fonts.
E o que tudo isso significa para UX? Por mais que o artigo do NNg considere “desapontador” a pesquisa não dar uma resposta clara para qual fonte usar em interfaces digitais, consigo pensar em duas conclusões animadoras. A primeira, um tanto óbvia, é que as telas digitais oferecem nitidez e contraste suficiente para a maioria das fontes, e isso é um campo fértil para que tipos com diversos atributos possam compôr interfaces que oferecem boa leitura de textos e mensagens curtas. A segunda, e mais importante pra quem está entrando na área de UX, é o cuidado necessário com as respostas do usuário em pesquisas.
Quando falamos de usuário, falamos de alguém dificilmente saberá discernir a Arial da fonte customizada super moderna da identidade visual da sua empresa, não saberá nenhum nome das HTML safe colors, nem saberá a quantidade de pixels da tela que usa todo dia. No entanto, falamos de alguém que sabe dizer que não viu o botão de compra porque “a fonte estava muito pequena”, que as informações que ele precisa pra tomar decisões importantes no dia-a-dia “não tinham destaque”, que deixou de fazer alguma ação importante porque “tinha texto demais”. Fazer pesquisa é um ofício que demanda ouvir e interpretar o usuário dentro de seu contexto, suas dores e necessidades, e nem é ideia minha reduzir o valor de ouvir o usuário; pelo contrário, é nossa obrigação entregar para o usuário produtos que eles saibam usar e perguntas que eles saibam responder.
Recomendações
🎧 Podcast: Papo de UX #2, com Luan Matheus e Gabriel Bastos conversando sobre a importância da atividade de pesquisa com usuários em UX.
🎥 Vídeo: Practical Typography Tips (em inglês), com dicas para um bom uso de tipografia em websites e aplicativos.
🔗 Link: ILT – The Font Game, um quiz de identificar fontes do I Love Typography.
🇧🇷 Fonte brazuca: Versos, de Eduilson Coan, Ana Laydner, Thiago Belotti e Fabio Haag.
Nota do editor
O texto dessa edição é um que está há uns três meses no meu editor, esperando a melhor forma de abordar e passar para frente os resultados e conclusões somado a algo prático e interessante de abordar. Talvez não tenha sido o caso dessa vez; somada aos últimos contratempos da mudança e o caos trazido pelo segundo turno das eleições e seus desdobramentos, veio a bagunça no processo criativo, o que eu acho que vocês podem entender, afinal quem nunca precisou de mil abas para finalmente ter uma ideia que presta… Contudo, prometo que os próximos textos terão mais a cara do que o Tipo Aquilo sempre foi, e por acaso, sempre foi mais fácil de discorrer.
Por fim, fica uma nota de pesar à passagem do designer, professor e pesquisador brasileiro Guilherme Cunha Lima (1945–2022), que teve uma imensa importância para a pesquisa da memória gráfica brasileira, a formação de pós-graduações em design no Brasil e a orientação de profissionais, professores e pesquisadores que continuam seu legado de estudo e redescoberta do design gráfico nacional.
Escrito em 100469.28