Pra quem sabe que, de onde menos se espera, é de lá que não vem nada mesmo, causou um total de zero surpresas o veto do presidente à inscrição da psiquiatra Nise da Silveira no livro de Heróis e Heroínas da Pátria, em maio deste ano. A médica psiquiatra alagoana é reconhecida mundialmente pelo seu trabalho de tratamento humanizado de pacientes com doenças mentais, e é tida como uma precursora do movimento anti-manicomial por sua oposição a métodos violentos usados como tratamento dessas doenças. Para Nise, o confinamento em manicômios com o uso intensivo de eletroconvulsoterapia — o famoso eletrochoque —, lobotomia e hipermedicação apenas desumanizava o paciente, não contribuindo para a recuperação e reinserção na sociedade.
Ao longo do tempo, a sociedade teve formas diferentes de lidar com seus loucos, desde a romantização e elogio à loucura, ao exílio, ostracismo e confinamento de seus desviantes em leprosários, asilos e hospitais psiquiátricos (citei Foucault!). No Brasil, o histórico desumano no tratamento de doentes mentais tem como seu maior exemplo o Hospital Colônia de Barbacena, onde mais de 60 mil pessoas — cerca de 70% delas sem diagnóstico de transtorno mental — encontraram a morte nos 80 anos em que permaneceu ativo. Nesse contexto desastroso, o trabalho que Nise desempenhou incentivando o convívio com animais dóceis e a produção artística como meio de expressão, tratamento e reinserção de pacientes com doenças mentais foi um sopro de esperança para vários pacientes que encontraram na arte um caminho para o diálogo pacífico com o mundo. O trabalho de Nise é importante para que, hoje, possamos falar de Arthur Bispo do Rosário.
O sergipano Arthur Bispo do Rosário, nascido na cidade de Japaratuba em 1909 ou 1911, fez muita coisa antes de despertar como o artista plástico que nunca assumiu ser. Em 1925, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi boxeador, vulcanizador e faz-tudo na casa de seu advogado. Em dezembro de 1938, ele tem uma visão noturna em que viu-se descendo dos céus rodeado por sete anjos, e correu até o Mosteiro de São Bento, apresentando-se como enviado de Deus para “julgar os vivos e os mortos”. Arthur foi enviado no dia seguinte para o Hospício Pedro II (que atualmente abriga o campus da Praia Vermelha da UFRJ), diagnosticado como esquizofrênico paranóide e enviado para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, onde passaria o resto da vida numa sucessão de fugas, retornos, clausuras auto-impostas, trabalhos temporários e tentativas fracassadas de ressocialização.
O ano de 1964, que colocou fim à quarta república brasileira em favor de uma ditadura militar, foi quando Bispo do Rosário voltou à Colônia de vez, aceitando sua condição mental e buscando um lugar para permanecer de forma pacífica. Por vezes, até ajudava os funcionários da instituição com outros pacientes. No entanto, em uma dessas ocasiões, ele errou o uso da força e acabou preso numa cela por três meses. Nesse período, segundo Bispo, recebeu vozes que ordenaram-no a representar todas as coisas existentes na Terra para apresenta-las no dia do juízo final. Deste momento até sua morte em 1989, utilizando tinta, pincel, retalhos, agulha e fios, Bispo do Rosário dedicou-se a registrar todas as coisas das quais tinha conhecimento para apresentar a Deus em suas vestimentas, estandartes e objetos cotidianos.
Por anos a fio, Arthur Bispo do Rosário ressignificou objetos comuns, como canecas, garrafas e pedaços de madeira, preparando-os para sua exibição final perante Deus. Ao mesmo tempo, costurou em bandeiras e em suas próprias roupas dezenas de textos e ilustrações sobre si, sua vida, o Brasil e o mundo, as pessoas com quem conviveu, os nomes que passaram pela sua existência, costurando diversos estandartes que tornaram-se objeto de curiosidade pela classe artística no começo da década de 80. Na mesma época, ganhava forma no Brasil a luta antimanicomial, após protestos de trabalhadores de instituições de saúde mental contra diversos métodos violentos empregados na época, e o trabalho feito por Bispo do Rosário ganhou projeção, sendo exposto pela primeira vez em 1982, no Museu de Arte Moderna.
Apesar disso, Bispo do Rosário nunca considerou-se artista. Segundo o próprio, seus estandartes e objetos não tratavam-se de coisas para ser expostas numa galeria de arte, mas eram o resultado de sua missão de registrar todas as coisas. Inclusive, as ocasiões em que a produção de Bispo do Rosário é exibida como “imagens do inconsciente”, junto com artistas formados em terapias ocupacionais, são vistas com ceticismo por alguns críticos de arte que entendem que isso “reduz sua obra” e relega apenas aos “sãos” o direito de ser e decidir quem é artista de fato. Contudo, o reconhecimento da arte como uma forma de “salvação” ou “expiação” com dignidade, ante os métodos violentos dos manicômios, é onde se dá o encontro entre Dra. Nise e Bispo do Rosário. Fisicamente, este encontro nunca aconteceu; mas a importância da psiquiatra para que, hoje, conheçamos o trabalho de Arthur, permanece atestada.
Além da linha e agulha, as letras e números foram ferramentas poderosas de Arthur Bispo do Rosário em sua missão. É fácil perder-se na infinidade de caracteres costurados um a um, em manchas de texto diagramadas de forma a facilitar seu trabalho de registrar todas as coisas. Desde a história de sua vida de Sergipe até as celas em que tinha apenas as vozes da cabeça como companhia, tudo foi tomado nota em bolsas, casacos, estandartes, mantos, velas de barcos. As letras maiúsculas permeiam cada canto, criando texturas que dialogam com as ilustrações naïf costuradas à mão, preenchem os espaços e fazem com que o texto pareça um registro fiel de uma linha de pensamento. De forma semelhante, funcionavam os manuscritos da antiguidade e alta idade média, em que a intenção era reproduzir um discurso falado. Assim, Bispo articulava seu texto da maneira que lhe fosse conveniente, de acordo com o espaço na superfície, o material que tinha para escrever e o formato com que achava mais fácil seu pensamento ser descrito.
As letras tornam-se mais que formadoras de palavras na obra de Bispo do Rosário; elas formam texturas, preenchem espaços e permitem que ele inclusive se vestisse de sua própria mensagem, em seus mantos e roupas. A forma com que Bispo apresenta o mundo nas ilustrações de seus estandartes também é notável, criando mapas, representações de espaços urbanos e momentos históricos do Rio de Janeiro para acompanhar seus textos e apresentar visualmente todos os lugares do mundo a Deus no juízo final. Apesar de viver recluso na Colônia, ele conseguia o conhecimento que precisava para representar países com suas bandeiras, além dos confins de um Brasil que nunca conseguiu ver pessoalmente além de Sergipe e do Rio de Janeiro.
Com o tempo, Arthur desenvolveu uma forma própria de catalogar e guardar os pertences que pretendia exibir para Deus ao fim de sua missão, juntando um acervo de centenas de peças, objetos e vestimentas que, apesar de vários convites posteriores, a exibição de 1982 foi a única vez que Bispo do Rosário permitiu que fossem expostas. Arthur morreu em 1989, pobre e exilado do mundo, tendo guardado para si os registros que fez para sua missão. Seu legado pertence atualmente ao Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, formado também por obras de pacientes de arteterapia da Dra. Nise, como uma forma de apresentar Arthur ao mundo como o artista que foi, em plena consciência, e também de colocar no circuito artístico a discussão sobre arte e loucura, e na sociedade a importância da luta contra os manicômios e a desumanidade no tratamento de pacientes de doenças mentais.
As imagens desta edição foram tiradas na ocasião da exposição “Bispo do Rosário – Eu Vim: Aparição, Impregnação e Impacto”, no Itaú Cultural, contando com o legado de Arthur Bispo do Rosário distribuído entre três andares da galeria, entre objetos pessoais, memórias e produção plástica, além de outros artistas influenciados por sua obra.
Recomendações:
🎧 Podcast: Rádio UFRJ — Mulheres Intelectuais de Ontem e Hoje, apresentando a história da médica psiquiatra Nise da Silveira e sua importância para o tratamento humanizado de pacientes de doenças mentais em todo o mundo.
🎥 Vídeo: Bispo do Rosário – 50 fatos, com Vivian Villanova apresentando 50 fatos sobre o artista Arthur Bispo do Rosário.
🔗 Link: Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, site oficial do museu que guarda o acervo deixado pelo artista sergipano.
🇧🇷 Fonte brazuca: Penrose Geometric, de André Themoteo Alves Corrêa.
Nota do editor
Eu gostaria de ter finalizado este texto antes do primeiro turno das eleições, como uma forma sutil de dar um posicionamento a essa newsletter contra o atual presidente, que nego até a dignidade de tratar pelo nome. Entre tantas manifestação de desprezo à cultura, à ciência e ao estado democrático de direito, o veto à inclusão da Dra. Nise entre os heróis da pátria, revertido pelo parlamento, é um dos que simboliza o quanto o presidente é afeito ao emburrecimento do Brasil.
Não que eu ache que esse texto ia virar voto ou decidir tudo no primeiro turno; eu tenho noção do meu pequeno alcance. Contudo, esta nota do editor fica como registro de que eu também tenho noção do meu papel de quem nunca daria sequer um pão mofado para qualquer projeto fascista de poder.
Escrito em 100389.31
Amigo e coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito!