Tipo Aquilo #63 – Despedidas paulistanas, parte II
A paisagem urbana paulista constituída pelo Pixo
Agradecimentos à Fabricia Ribeiro, cujo TCC foi referência para esta pauta, e às publicações da editora Monstro dos Mares, que deram contribuições importantes para este texto.
Existe uma convenção social que relaciona uma pessoa ao lugar que ela ocupa num dado contexto, baseado no status que ela possui. Essa convenção tende a colocar pessoas mais poderosas, dignas ou honradas num lugar mais alto, supostamente mais próximo de onde suas divindades estão e onde podem desempenhar com maior eficácia seu papel nas relações de poder dessa sociedade. Na São Paulo do começo do séc. XX, era comum dizer que “o dinheiro sobe o morro”, já que os pontos mais altos da cidade (como a Avenida Paulista) abrigavam os casarões das famílias comerciantes e industriais da capital paulista. Para baixo do morro, iam as fábricas, máquinas, a propriedade privada e os salários que permitiam aos trabalhadores o mínimo de sustento. Ao menos, era o que essas famílias pensavam.
Do alto do morro, também vinha uma relação de propriedade da cidade; a proximidade dessas famílias da elite paulistana com a política tornavam-nas praticamente donas da cidade, e ao seu gosto, a cidade foi dividida e zoneada marginalizando a população pobre (e preta, se considerarmos o pensamento higienista da época), tornando-a “invisível” para os seus. Vestígios dessa apropriação à força aparecem em muros, portões, nos altos de prédios e casarões, como um lembrete de que existe uma população “invisível” ali, mas que nunca vai hesitar em deixar sua marca e reclamar para si um espaço aos olhos de todo mundo, no amontoado de concreto da cidade. Assim como o Art Déco foi apropriado pela cidade, a pixação (com “x” mesmo, já explico isso) foi outro estilo de escrita que, logo quando chegou, ganhou uma cara própria; essa face avessa da moeda de São Paulo é o tema do Tipo Aquilo de hoje.
No início, era o spray, e o spray se fez pichação. Por enquanto, ainda com ch mesmo, como o dicionário manda. As primeiras latas de tinta em aerosol chegaram ao mercado nos anos 1950, dispensando o uso de pincel e outras ferramentas para pequenas pinturas. Em pouco tempo, virou um instrumento de protesto, permitindo no início que qualquer parisiense com muita coragem e pouca habilidade deixasse seu recado em muros e paredes, às vistas dos transeuntes. De Paris, o uso da tinta spray como protesto chegou a Nova Iorque e, enfim, ao Brasil, aparecendo inicialmente nos arredores de universidades, com mais foco nas mensagens contra a ditadura militar e a repressão no ambiente estudantil. A partir dos anos 1980, com a disseminação da cultura do hip-hop na capital paulista, também influenciada pelo punk, hard core e o metal, as letras em paredes tomam uma nova cara, com maior foco nas formas rápidas e incógnitas das letras.
A partir desse momento, o spray passa para a mão da massa, que subverte seu efeito contestador; antes o importante era que a mensagem fosse entendida por todos; depois, o negócio é estar à vista de todo mundo. Não que o pixador (a partir de agora, é com x) seja o Charada do universo de Gotham City… ele não tá nem aí se você não entende o que está escrito. Se ele quisesse que você entendesse, escreveria normalmente, como quando manda recado para a polícia, o poder público ou o amor da sua vida. A contestação não está mais na mensagem, mas sim na mera presença na paisagem urbana, indicando que aquele muro, monumento ou mesmo um prédio não pertence à pessoa que (supostamente) paga o IPTU e tem seu nome registrado na prefeitura. Até que seja pintado de novo, aquele lugar pertence ao pixador ou ao grupo que ele pertence, e só quem faz parte do rolê sabe quem é o rosto por trás daquela identidade visual cheia de símbolos feitos para caber em qualquer pedaço de muro. Não que a pixação tenha ficado menos política por isso.
Isso não sou eu fazendo apologia ao pixo, pra que ele pareça mais rousseauniano na sua próxima discussão de boteco; é como os próprios pixadores vêm a sua criação. “É pra afrontar mesmo. É não estar nem aí mesmo […] é anarquia pura. É ódio”, como dito no documentário “Pixo” (2009). Aqui, por mais que a gente entenda o abismo da desigualdade social como um fator para que a pixação exista, isso é ingênuo; é só o começo de uma discussão que há décadas não tem resposta pronta. Então, vale a pena aqui ver o que há de tão paulista na pixação que, para o olhar mais atento, faz com que ela seja bem diferente de outros locais no Brasil… a começar pela verticalização da cidade. Com a proliferação de prédios e arranha-céus pelo espaço urbano, as letras pixadas tornam-se também verticais, pra ocupar todo espaço que possam, e uma pixação só é tida como bem-sucedida quando todas as letras tenham a mesma altura.
O punk e o metal foram pontes para que, inspirados pelas marcas de bandas como Iron Maiden, Kiss e Judas Priest, os pixadores paulistas trouxessem para suas marcas pessoais elementos da escrita rúnica, utilizada pelos povos germânicos pré-cristianização. O fotógrafo Adriano Choque trata desse fenômeno como um “presente” dos povos bárbaros da Europa medieval para os bárbaros da capital paulista. O aspecto “quebrado” das letras também lembra a passagem da caligrafia carolíngia para os primeiros modelos de alfabetos góticos, durante os séculos IX a XII, em que as formas retilíneas das letras, mais simples de reproduzir pelos copistas, tornaram-se predominantes no norte da Europa. No “pixo reto”, as letras com poucas curvas demandam menos habilidade manual, tornam-se mais facilmente reproduzidas, facilitam a escrita dela em quaisquer dimensões e viram uma característica que facilita a escrita tanto com spray quanto com pincel e rolo de tinta.
A propósito, os símbolos que você vê pixados nos muros não são um “alfabeto” ou um sistema de escrita exclusivo dos pixadores; são as 26 letras do nosso alfabeto latino, reinventadas a cada nova pixação e compartilhadas nos encontros das grifes, os grupos de pixadores. Cada grife vai lutar, muro por muro, pra ser a mais notória da região. No meio das letras, às vezes tem um símbolo em especial que identifica a grife, sua “marca” incontesta. A liberdade artística permite ao pixador reinventar cada letra a cada pixação; assim, uma documentação rigorosa dessas pixações mostra centenas de formas diferentes de escrever a mesma letra, misturando serifas, adornos e toda sorte de grafismos que valorizem-nas como obras de arte. É assim que os pixadores gostam de ser vistos, tendo sua arte como algo incômodo, que rebela-se contra o cânone artístico, e que a indústria cultural ainda não é capaz de digerir e devolver em algo palatável para a massa.
Colocar arte nessa discussão é mais um componente que faz do pixo algo que não tem uma conclusão, ou que alguma lei vai fazer com que desapareça da noite para o dia, como governo após governo tenta desde a década de 1980. O pixo é um fenômeno que acontece por vários motivos: tem o “ego” do pixador; tem a configuração urbana caótica de São Paulo que há muito tempo não se resume apenas em centro e subúrbio; tem os problemas decorrentes de desigualdade social e da marginalização de populações pobres; tem a necessidade de ser visto e reconhecido pelos seus pares, e outros fatores. Transformar o pixo numa arte mais aprazível para a população, em geral, por meio do grafitti e do street art, que os pixadores geralmente não atropelam, é o que a cidade consegue fazer para lidar com a existência dessa subcultura. O Beco do Batman, na Vila Madalena, é um símbolo de como São Paulo começa, de forma ainda bem pueril, a dialogar com o pixo. Outro exemplo de um passado não tão distante é a 29ª Bienal de Arte de São Paulo ter acomodado em um andar inteiro os pixadores que haviam invadido e pixado um andar vazio da edição anterior.
O pixo, além de ser crime ambiental no artigo 65 da Lei Federal nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, com pena de prisão, variável de três meses a um ano, sob aplicação de multa, também é referência para type designers como Tony de Marco, Gustavo Lassala, e outros que publicaram fontes — gratuitas e pagas — com o intuito de reproduzir uma fração de sua estética transgressora no meio digital. Assim, a pixação — em especial, o pixo reto — torna-se cada vez mais entendida como uma expressão artística genuína e uma identidade visual de São Paulo, mesmo que, assim como as letras Art Déco, elas tenham vindo de fora do Brasil e moldadas conforme a necessidade e oportunidade do pixador de “ganhar a senha” de um prédio e espalhar sua assinatura em cada marquise, cada vez mais ao topo, onde o reconhecimento é mais valioso.
Embora este texto aborde apenas uma fração do que representa a subcultura do pixo em São Paulo, não quer dizer que ele resume-se a um estilo de escrita, ou uma mera atividade criminalmente reprimível. O pixo tem sua história, seus herois, suas lendas, artistas que ganharam projeção internacional, e desde o Cão Fila chegou para ficar e reivindicar seu espaço. Não importa se você estiver andando pela Avenida Paulista, pela 25 de Março, Berrini, Faria Lima, Santos Dumont ou Santo Amaro: em algum canto, o pixo reto estará lá, pra lembrar a quem quiser ler de que existe uma outra São Paulo dentro de São Paulo, que as pessoas comuns não querem saber ou lembrar que existe, em que para ser dono de um lugar e ter o respeito dos seus, basta ter coragem, vaidade e uma lata de tinta na mão.
Recomendações:
🎧 Podcast: Fora de Prumo #26, com Arthur Francisco, Angelo Régis, Gabriel Fernandes e Natália Gaspar debatendo sobre o livro “A Cidade e a Cidade”, de China Mieville.
🎥 Vídeo: Pixo, documentário de 2009, dirigido por Roberto T. Oliveira e João Wainer sobre a subcultura do pixo em São Paulo.
🔗 Link: Editora Monstro dos Mares e suas publicações sobre pixação disponíveis para download e venda em copyleft.
🇧🇷 Fonte brazuca: Adrenalina, de Gustavo Lassala.
Nota do editor:
Primeiramente, eu quero agradecer a quem se inscreveu recentemente, e avisar que a ideia do Tipo Aquilo ainda é manter-se quinzenal. Este último texto, em especial, demorou porque pixação não é um assunto que uma pesquisa simples pode resolver, e porque… bem… a série se chama “despedidas paulistanas” porque, depois de sete anos bem-vividos na medida do possível em São Paulo, me mudei para o Canadá. (=
Para fazer jus à cidade que me proporcionou amigos para a vida inteira, uma especialização em tipografia e uma porção de outros pequenos desejos realizados, resolvi abraçar as letras que mais marcam a paisagem da cidade, seus motivos para existirem, e do que mais vou sentir saudade toda vez que lembrar delas. Sim, mesmo das pixações.
Parece até aquele eterno debate sobre a puta vista, mêo que é ver São Paulo do alto de um prédio e contemplar um monte de concreto para absolutamente todos os lados. Não estou entre os que acham uma vista dessas esteticamente bonita. Só que, por trás de cada janela, tem uma história acontecendo, e essa paisagem feia acolhe (do jeito que dá) milhões dessas histórias ao mesmo tempo — um jovem casal tentando ganhar a vida, um pai que acabou de vencer o câncer, uma escritora recebendo o seu primeiro “sim” de uma editora, alguém que ouviu um “sim” da pessoa amada — se entrelaçando e acontecendo, apesar de tudo. Lembrar disso talvez torne a sua próxima vista da paisagem de São Paulo um pouco mais interessante.
No mais, obrigado por tudo, São Paulo. Até a próxima.
Escrito em 100233.93
São Paulo também sente falta de vocês ♥
Logo menos terão letras canadenses por aqui!
Muito sucesso e muitas boas aventuras, amigos <3