Tipo Aquilo #62 – Despedidas paulistanas, parte I
A paisagem urbana paulista constituída pelo Art Déco
Agradecimentos ao Prof. José Roberto D’Elboux, cuja tese de doutorado foi referência para essa pauta, e ao Gabriel Fernandes, pela ajuda com letreiramento em arquitetura. (:
Há quase um ano os companheiros de escrita periódica da newsletter Eixo me pediram para elencar algumas fontes que, de alguma forma, representam São Paulo e Rio de Janeiro. A princípio, alguém poderia pensar nas placas de ruas — ClearView em São Paulo (desde 2007) e uma mistura de Univers com Verdana no Rio; só que esse uso cotidiano delas não quer dizer que elas representam essas cidades. Um catálogo da Ikea que use Verdana não parece mais carioca, e uma placa de trânsito em qualquer lugar do mundo com a ClearView não tem cara de São Paulo. Recorri, então, aos nossos type designers, que de uma forma ou outra, têm essas cidades até no sangue; não só como amor, mas também como fuligem.
Embora o berço oficial da tipografia no Brasil seja o Rio de Janeiro, com a vinda da família real portuguesa em 1808 e a fundação da Imprensa Régia, não tardou para que o outro lado da Dutra também fizesse história com letras. São Paulo emergiu como potência econômica brasileira quase sessenta anos depois, quando o ciclo do café encontrou na terra roxa o lugar perfeito para o plantio em massa do grão. Com o dinheiro do café financiando a industrialização brasileira dessa época e as comunidades de imigrantes formando a mão-de-obra especializada para as novas fábricas, com máquinas importadas, São Paulo tornou-se uma capital econômica e um pólo de urbanização. Grandes prédios e arranha-céus moldavam a paisagem, e letreiros com inspiração do Art Déco ostentavam a opulência da elite paulistana. O Tipo Aquilo de hoje aborda um pouco da história dessa riqueza expressa em letreiros presentes até os dias atuais nas ruas de São Paulo.
Uns dizem que o século XX começou simbolicamente com a invenção do avião. Outros tomam o assassinato do Franz Ferdinand, em 1914, como marco zero. Uma terceira corrente sustenta que aristocratas morrendo e rinha de inventores são só mais uma terça-feira na história, mas colocar um urinol numa galeria de arte, isso sim foi demais. A tecnologia deu um salto considerável em seu estado de arte, com a disseminação do eletromagnetismo, do motor à combustão e o nascimento da aviação; até antes do estrago social e econômico causado pela Grande Guerra de 1914 a 1919 na Europa, as ilustrações de pessoas andando de Londres a Paris em bicicletas voadoras e outras loucuras com visual steampunk eram vislumbres reais/oficiais do futuro vindouro. No entanto, a guerra jogou a moral pra baixo e motivou vários artistas e intelectuais a propor uma mudança radical daquele ponto em diante, uma ruptura com tudo que era tradicional e “belo”.
A profusão de movimentos artísticos surgidos nesse meio é comumente reunida no guarda-chuva do modernismo, embora cada um apontasse para direções diferentes e alguns até flertassem com o fascismo. Na tipografia, o modernismo manifesta-se inicialmente numa desconstrução dos grids, dispondo as letras em composições heterodoxas e carregadas de novos significados. Depois, desconstroi as letras enquanto sinais gráficos criados por instrumentos especiais (como o pincel chato e as penas quadrada e flexível), de forma a explorar ao máximo os limites da legibilidade e reconhecimento das letras em formas geométricas simples, e criar novas fontes e sistemas a partir dessas formas. Esse pensamento abriu caminho para uma miríade de estilos de letras decorativas que chegaram ao Brasil sob influência do Art Déco.
Era comum que as principais escolas de engenharia e arquitetura ensinassem caligrafia e desenho de letras; não foi diferente no Brasil, com disciplinas presentes no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, na Escola Politécnica de São Paulo e no Mackenzie College. Embora tivessem material didático voltado para o ensino e reprodução de formas de letras tradicionais, essas escolas não tardaram a adotar estilos de letras alinhados ao Art Déco, já que estavam presentes na mídia de massa da época, em cartazes, revistas e jornais. A influência modernista fez com que alguns desses estilos de letras, com origens na Secessão Vienense, no estilo alemão Plakatstil, nas composições tipográficas futuristas de Fortunato Deparo e nos trabalhos da Vkuthemas, De Stijl e Bauhaus, fossem chamados de “futuristas” e “cubistas”.
Apesar desses nomes pejorativos, essas fontes ainda refletiam uma cultura cosmopolita e moderna que a elite paulistana desejava ostentar. A partir da década de 1930, a cidade passou a ter mais de 1 milhão de habitantes, tornando-se uma metrópole sul-americana que crescia para os lados e para cima, contando com cada vez mais numerosos prédios de apartamentos e escritórios. Em contrapartida a outros estilos de arte e arquitetura influentes no Brasil, como o neocolonial, o Art Déco caiu como luva para a cidade: geometrizado e despido de ornamentos, ajudou a reduzir os custos de construção dos novos arranha-céus. Para compensar a escassez de ornamentação estrutural, os letreiros arquitetônicos e os adornos de ferro e bronze em portões, corrimãos e outros elementos assumiram essa função.
Assim, as letras com esse estilo tornaram-se frequentes nas ruas paulistanas, fazendo clássicas fachadas como o do Banco de São Paulo, Estádio Municipal (Pacaembú), Prédio Santa Elisa, entre outros. Os anos entre o final da década de 1930 e o início de 1940 foram mais prósperos entre esses letreiros, que trilharam seu caminho dos desenhos técnicos para a expressão arquitetônica, quase escultural. Grande parte desses letreiros vencem a prova do tempo a cada dia e continuam servindo como adorno e objeto de lembrança de tempos distantes para quem passa por perto e, ao observar, lembra de tempos distantes; melhores para uns, piores para outros. Alguns letreiros têm mais sorte, graças ao tombamento do patrimônio público; outros dependem da boa vontade dos donos que, a cada geração, precisam lembrar da importância de que esses letreiros sejam preservados.
Algo interessante sobre o Art Déco é que o próprio nome do estilo surgiu no anos 60, um bom tempo depois de sua influência. Para um parisiense ou um paulista dos anos 1930, bastava dizer que tratava-se de um estilo moderno, do futuro. Alguns, mais paranóicos, até chamavam o estilo de “comunista” e “judeu” (pois é…). Por acaso, esse período entre os anos 1920 e 1950 marcaram uma fase quase idílica na história de São Paulo, em que o franco crescimento econômico contrastou com a política inconstante e a frágil democracia do pós-império, que abriu espaço para a ascenção da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e vivenciou momentos como a Revolta Constitucionalista de 1932.
Os anos seguintes, marcados por novos governos, uma ditadura militar e o retorno a um estado democrático de direito, continuaram prósperos para a cidade, mas sem algo tão único e identitário para a capital paulistana quanto as letras Art Déco foram. Até tem um outro estilo, mais polêmico e não exatamente bem-quisto, mas esse fica para o próximo episódio deste dueto sobre São Paulo. Por ora, atenho-me a defender que, por mais francesas que as letras dos letreiros arquitetônicos pareçam ser, eu não hesitaria em dizer que essas letras, sim, são a cara tipográfica de São Paulo; mais do que a Helvetica nas estações de metrô, que a ClearView na sinalização urbana, ou que a Arial Black, que brota como plantas no meio do concreto a cada banner feito no CorelDRAW que o artista sequer abriu a caixa de seleção de fontes.
Recomendações:
🎧 Podcast: Fora de Prumo #19, com Arthur Francisco, Diego Brentegani, Gabriel Fernandes e Natália Gaspar debatendo sobre o tombamento e preservação patrimonial no Brasil.
🎥 Vídeo: DiaCrítico 12 – Tipografia urbana paulista, com José Roberto D’Elboux e Tony de Marco conversando sobre a paisagem tipográfica da cidade de São Paulo.
🔗 Link: Tipos Paulistanos, a conta de Instagram oficial do projeto de catalogação de letreiros arquitetônicos do Prof. José Roberto D’Elboux.
🇧🇷 Fonte brazuca: Maggiore, de Lucas Franco e Claudio Rocha.
Escrito em 100184.11