No último dia 23 de março, virou poeira de estrelas o cientista de computação Steve Wilhite. Aos 74 anos, vivia uma vida tranquila, aposentado e longe dos grandes problemas que a tecnologia da informação tem no dia-a-dia. O nome dele não te parece familiar, mas ele era um engenheiro que trabalhou por vários anos na CompuServe, onde deixou vários trabalhos importantes para quem usava a Internet nos anos 80 e 90. De seu legado, duas invenções são muito importantes para o nosso cotidiano: a primeira delas é o GIF, o formato de imagens com animações curtas que é popular até hoje. Por uma série de questões técnicas, ele vem sendo substituído por outros formatos de vídeo mais leves e universais. Assim, a segunda grande invenção de Wilhite, hoje em dia, torna-se mais importante do que o próprio GIF: é a pronúncia certa de GIF.
A gente caminha, meio à contragosto, para a tal da web3. Dizem que terá NFT, metaverso, blockchain e outras coisas inexplicáveis que, de forma inexplicável, tornarão sua vida inexplicavelmente melhor. Enquanto isso, vamos voltar à época da Internet feia, lenta, feita para gente aventureira que buscava trocar informação e compartilhar conhecimento de todo canto do mundo sem tanto compromisso de fazer dinheiro ou criar tendência. Uma Internet parecida com o que o projeto Gemini tenta trazer para os dias de hoje, sem o propósito de substitui-la. Parece que não, mas existem questões de design gráfico e tipográfico da web 1.0 que valem a pena ser visitadas; em especial, a história do hyperlink.
Alguns leitores mais velhos ainda lembram dos monitores de fósforo, monocromáticos e trambolhões. Na década de 1990, eles começaram a ser substituídos em massa por monitores CRT que também eram trambolhões, mas conseguiam reproduzir o espectro de cores usado pelo Windows desde sua primeira versão. Reproduzir cores, nessa época, não era mais um capricho: tornou-se requisito fundamental para a indústria, na ambição de transformar o PC numa central de entretenimento multimídia. Logo, os computadores domésticos tornaram-se capazes de reproduzir paletas de 16 cores; os melhores chegavam a 256 cores, o que já possibilitava o uso de cores como elemento de interface que traz informação ao usuário. Um ícone vermelho referia-se a um evento crítico; um texto cinza esmaecido indicava uma ação indisponível; e um ícone verde vinha como uma resposta de sucesso.
Já o azul, bem… até o Windows 3.1, ele não era usado pra muita coisa além de colorir barras de título e dar um ar classudo à interface. No entanto, ele trazia um tom de cor chamado hyperlink blue, que surgia quando a pessoa clicava em um ícone e ele mudava o texto de preto com fundo branco para branco com fundo azul, como forma de indicar que o item estava selecionado. A gente tem que voltar um pouco no tempo para entender o tal do hyperlink: imagine um artigo no Wikipedia sobre um assunto que te interessa e faz abrir um punhado de abas com tópicos correlatos. Isso parece corriqueiro para o nosso modo de usar a Internet hoje, mas era uma ideia visionária em 1960, quando o engenheiro de software Ted Nelson começou o Xanadu, um conceito de repositório não-linear de informação que não traria apenas texto, mas áudio, vídeo e outras mídias (hypermedia). Isso era o que Nelson chamava de hipertexto (hypertext), um texto sobre um assunto que podia referenciar outro assunto correlato por meio de um hyperlink.
O Xanadu era mais ambicioso do que apenas colocar hyper em qualquer coisa, mas esses elementos básicos apareceram em outros lugares — inclusive no WorldWideWeb, o conjunto de protocolos e linguagens criadas em 1989 que formam a estrutura lógica da Internet que usamos atualmente. Ele trouxe do Windows 1.0 o uso de hyperlinks com sublinhado, como forma de ilustrar que aquele pedaço de texto leva a outro lugar. Os links (para os íntimos) tornaram-se azuis por padrão em 1993, em versões de testes dos navegadores Mosaic e Cello. O motivo para que fossem azuis vem de alguns anos antes, quando o Prof. Ben Shneiderman conduziu testes controlados em 1985 para verificar a melhor cor de um hyperlink: a cor azul foi a que mais destacava o conteúdo sem interferir na leitura do restante do texto.
A partir desse momento, a combinação de azul com sublinhado tornou-se um cliché de uma Internet que… bem… ainda era feia. Ela não estava pronta para ser a grande promessa de investidores e tecnólogos de transformar a economia mundial ainda na década de 1990, nem para ser um ponto de contato robusto entre grandes marcas e potenciais consumidores. Em 1994, ela mal conseguia mostrar qualquer coisa além de (hiper)texto preto (e azul) em fundo cinza com Times New Roman ou Arial. Formatar estilo dentro do HTML era (pardon my french) uma m****. O CSS, linguagem de folhas de estilo para sites, foi criado em 1996, mas só a segunda versão dele, de 1998, se mostrou realmente poderosa. Antes dele, o controle de estilo era feito pelos navegadores, que determinavam fonte e tamanho de corpo de texto e cores de links.
E, quando falo de fonte, lembre-se que não tinha webfonts: o usuário tinha apenas as que vinham instaladas na máquina. O primeiro esforço para uma tipografia mais bonita na Internet veio da Microsoft, com o projeto Core fonts for the web de 1996. A ideia era distribuir “gratuitamente” (apenas para uso pessoal, sem redistribuição) um pacote de fontes proprietárias com alta legibilidade em telas de baixa resolução e suporte a vários scripts além do latino. Esse pacote podia ser baixado em computadores mais antigos, mas a partir do Windows 98 e Mac OS X, já vinham pré-instalados, dando mais opções para os webdesigners projetarem páginas e serviços para a Internet. Algumas dessas fontes são muito usadas até hoje, como a Georgia e a Verdana; outras, como a Tahoma e Trebuchet, tiveram dias de glória até os anos 2000. Também tinha a Impact, que ganhou a fama de fonte de memes anos mais tarde, e uma tal de Comic Sans que… bem… é um assunto pra depois.
As core fonts foram vitais para portais como o Yahoo! e o UOL que, conforme tornavam-se grandes hubs de serviços digitais, enchiam os 640×480 pixels de tela com textos e imagens pequenas, dispostos usando <table>
dentro de <table>
e outras coisas que fariam um programador front-end chorar sangue. Era preciso conciliar dezenas de links com as recém-criadas heurísticas de Nielsen e outras boas práticas para interfaces digitais. Esse contexto era perfeito para as core fonts mostrarem o que um bom hinting pode fazer: você pode reclamar que a Comic Sans é feia, mas nunca poderá dizer que ela e suas companheiras não funcionavam em 6pt. Em contrapartida, qualquer fonte usada no Fireworks passava por um anti-aliasing que comprometia a legibilidade em corpos pequenos.
Do outro lado, quem sabia fazer HTML na unha ou usar o export to web do antigo Adobe Macromedia Fireworks conseguia criar páginas inteiras baseadas em imagens fatiadas e alocadas numa tabela que ocupava toda a tela. Eram nesses sites que aparecia o experimentalismo de tipografia digital dessa década, florescente no design gráfico impresso, um respiro de originalidade e liberdade para produzir interações que uma revista nunca daria conta. O uso de imagens como suporte para fontes indisponíveis para usuários comuns conferia um caráter mais exclusivo. A linguagem da Internet também fazia o caminho de volta para o impresso: certas liberdades que os designers tomavam, como usar apenas letras minúsculas em menus e títulos, encher o texto de barras, pontos e underscores, e o uso de fontes bitmap, monoespaçadas e/ou com cara de industriais viraram clichés sobre tecnologia e conectividade.
Essa galera foi a mesma que, na década seguinte, tornou-se garimpeira de interatividade com imagem, som e vídeo no finado (e odiado) Macromedia Flash. Os computadores tornaram-se mais capazes; a Internet sobreviveu à bolha dos anos 2000 e ganhou algumas tecnologias adicionais que fizeram dela algo mais parecido com o que a gente usa. Só que, em termos de design, os sites mudaram pouco até a grande mudança que os smartphones trouxeram a partir de 2007, exigindo um desenvolvimento que pensasse em múltiplos dispositivos. Isso tudo eu deixo para uma outra edição; por ora, é hora de fechar aquela janela do DreamWeaver com um GIF dizendo que seu site está em construção, encerrar a conexão de 56kbps, fechar o Winamp com seus MP3 ripados ou baixados do Audiogalaxy, desligar o modem e aguardar enquanto seu computador está sendo desligado…
Recomendações
🎧 Podcast: SENAI Infocast #47, com a história do desenvolvimento da Internet e as mudanças que ela trouxe para a humanidade desde 1989.
🎥 Vídeo: The Kids’ Guide to the Internet (em inglês) o guia
perfeitopara a Internet dos anos 90, tão simples que até crianças seriam capazes de explicá-lade forma constrangedora.🔗 Link: Convincing-looking 90s fonts in modern browsers, (em inglês) o trabalho de Paul e Caitlin em reproduzir o aspecto pixelado da Times New Roman em antigos sistemas Windows com tecnologias modernas de tipografia digital.
🇧🇷 Fonte brazuca: Carbona, de Carlos Mignot.
Nota do editor
Provavelmente você reparou que algumas coisas parecem diferentes por aqui. Eu acabei atrasando um pouco essa edição para concluir, enfim, a migração para o Substack que eu queria fazer há algum tempo. Se tudo der certo, vocês continuarão a receber as edições normalmente, e leitores novos terão uma página inicial bem mais convidativa, com um acesso melhor às edições antigas. =D
“Substack, Cadu? Ouvi dizer que essa plataforma ajuda newsletters a serem monetizados. Quer dizer que agora o Tipo Aquilo será pago?” (leia isso como se fosse uma pessoa incrédula em algum informercial antigo da Polishop)
Não. Aliás, isso é um bom momento pra falar disso. Eu não tenho ambição de tornar o Tipo Aquilo pago, nem de produzir algum conteúdo premium, por ora. Essa newsletter é movida mais pela minha vontade de continuar estudando, pesquisando, desenvolvendo minha habilidade de escrita e compartilhando conteúdo de tipografia em português.
Pode ser que, eventualmente, eu faça alguma coisa que permita um retorno financeiro. Não vou mentir, pessoas: fazer isso aqui dá trabalho e consome meu tempo, por mais que eu adore. Seria legal ver isso recompensado, mas não é prioridade minha e nem requisito pra que vocês continuem acompanhando.
TL;DR: ir pro Substack melhora muitas coisas no Tipo Aquilo, mas pra vocês, nada muda. Acompanhar a newsletter continua pelo preço simbólico de zero reais. (=
Escrito em 99867.3