Tipo Aquilo #52 – Tipos de protesto
Excepcionalmente desta vez, eu começo a newsletter com um pedido especial para você. O Clube do Livro de Design, projeto tocado pela Teresa Bettinardi, está com uma campanha de arrecadação em reta final para a produção da versão em português do livro “The Natural Enemies of Books: A Messy History of Women in Printing and Typography”.
Neste momento, faltam 6 dias e mais 10% da meta para que a campanha tenha sucesso. Por isso, participe da campanha e colabore para que tenhamos mais literatura de design em português, com um livro importante para a história da presença feminina dentro das gráficas e estúdios. (=
Agora sim, voltamos à nossa programação normal:
No começo do séc. XIX, as fontes sem serifa começaram a aparecer aqui e ali, em specimens de fundidoras espalhadas pelo mundo. Nasceram meio desajeitadas, pois até então, pensar numa letra sem uma serifa para sustentá-la parecia algo ousado, quase uma heresia. De tão desajeitadas, acabaram ganhando o apelido de “grotescas”: apenas com o passar dos anos elas teriam um olhar mais cuidadoso para suas formas, o contraste reduzido que ofereciam e as possibilidades que a ausência das serifas ofereciam. Uma das primeiras observações foi a de que, sem elas, as letras podiam ficar mais próximas umas das outras em pesos muito mais escuros que o normal. Outra observação foi que as letras sem serifa eram, teoricamente, mais fáceis de reproduzir e até de escalar seu tamanho.
No começo do século XX, as fontes sem serifa tomaram um novo caminho: a geometrização extrema, tomado por Herbert Bayer e Paul Renner com a Futura, por exemplo. As grotescas clássicas, no entanto, não foram esquecidas: continuaram sendo moldadas em tipos de chumbo para texto, mas também gravadas em grandes blocos de madeira, mais leves e fáceis de manusear, e que possibilitaram que as letras fossem impressas em grandes dimensões e chamassem atenção a longa distância. Essas letras gigantes e condensadas, voltadas para cartazes e pôsteres, causavam impacto no leitor. Elas não tinham a intenção de ser amenas ou simpáticas: elas foram feitas para impor, com o peso de suas letras maiúsculas, sua mensagem ante o marasmo ao redor. Assim, as sans-serif grotescas ganharam o afeto dos publicitários e a atenção dos ativistas.
Os tipos de blocos de madeira concorreram por vários anos com as mãos dos pintores de letras, mais hábeis em fazer alterações e adaptações nas letras para que elas se ajustassem melhor ao conteúdo. Cartazes feitos de forma improvisada pelos próprios manifestantes e stencils também eram usados para chamar atenção, não com menos valor do que as letras pintadas ou impressas: todas as formas de colocar mensagens que empurram a sociedade para frente merecem o devido reconhecimento. Contudo, as letras sem serifa condensadas ficaram associadas aos pôsteres, ao contexto político-social em que as causas são ganhas no grito, na mobilização e conscientização das classes discriminadas e menos favorecidas.
Essas letras, usadas e recriadas em várias famílias tipográficas até hoje, sobressaem-se na multidão. É muito difícil esquivar-se delas, ignorá-las, dizer que não leu ou não se sentir afrontado, a princípio. Muito provavelmente elas dirão não o que você quer ler, mas sim o que precisa ser dito e entendido. Essas letras não abrem espaço para graciosidade, dubiedade ou ironia: são diretas, sérias e impactantes. Se elas estão à sua vista, é porque algo está tão errado no mundo que você, como leitor, não deveria ser tão passivo.
Além dos tipos, o cartaz tornou-se um meio importante de disseminar informação desde a história de Lutero pregando suas 95 teses na capela de Wittenberg, quando a impressão tipográfica mal tinha seus 60 anos. Simples de serem produzidos, tornaram-se uma nova plataforma para disseminar informação em massa por parte de governos e de movimentos contrários que dispunham de alguma gráfica. Os destinos desses cartazes eram serem colados em paredes e erguidos em protestos, amplificando a voz da multidão.
Queria a história que alguns desses cartazes ficassem guardados como símbolos de momentos históricos que reverberam até hoje. Cartazes como o “I am a man”, utilizado na greve dos trabalhados de saneamento básico de Memphis, 1968, nos EUA; o “We Can Do It”, cartaz da época da Segunda Guerra Mundial incentivando mulheres aos postos de trabalho anteriormente ocupados por homens; os cartazes de Alexander Rodchenko no contexto da Revolução Russa de 1917; ou mesmo o “Keep Calm and Carry On”, cartaz de 1939 que o governo britânico nunca chegou a veicular, mas tornou-se meme há alguns anos.
No ano passado, este que vos escreve dedicou a última edição aos letreiros pintados no asfalto de importantes avenidas, conscientizando sobre o racismo estrutural na sociedade. Em 2021, a pandemia levou a vida de centenas de milhares de brasileiros por todos os motivos expostos na investigação parlamentar do Senado. Movimentos populares voltaram às ruas contra a política negacionista e homicida do governo, que além de fracassar na saúde, falhou na retomada da economia, colocando o Brasil de volta ao mapa da fome no mundo.
Entre as manifestações, o cartaz “Vida, pão, vacina & educação” esteve presente, aparecendo em paredes dos centros urbanos como uma constante lembrança de porquê a gente precisa lutar. Cartazes contra os movimentos golpistas do presidente e da política econômica entreguista do ministro da economia apareceram em paredes, capas de artigos e reportagens no Brasil e no mundo, desfazendo histórias de crescimento em “V” e outras falácias. Se tem algo nos termos de design gráfico que marcou 2021 e precisa ser lembrado para os anos vindouros como uma lembrança do abismo entre as prioridades do governo e as necessidades do povo, que sejam esses cartazes.
Enfim, peço desculpas pela bad (e por quem achava que eu nunca falaria de política, ou que tem como falar de design sem falar de política) e me despeço de vocês, esperando que o fim de ano seja tão bom quanto puder ser. Mesmo vacinados, fiquem protegidos e protejam quem vocês amam. Descansem o quanto puderem, mantenham a saúde física e mental em ordem, e tenham um Feliz Natal! Que exista espaço para as resoluções e bons desejos de vocês no meio dessa bagunça por vir em 2022. (=
Recomendações:
🎧 Podcast: Guia Prático #51, com Rodrigo Ghedin e Jacqueline Lafloufa discutindo o rebranding de empresas de tecnologia e fazendo uma retrospectiva de 2021.
🎥 Vídeo: An Introduction to Letterpress Printing with Mr Smith (em inglês) uma introdução à impressão com tipos móveis e demonstração de tipos móveis de metal e de madeira.
🔗 Link: Here Are Some Of The Most Powerful Protest Posters From History, (em inglês) uma seleção do BuzzFeed dos cartazes de protesto mais icônicos da história.
🇧🇷 Fonte brazuca: Terrorista, de Tony de Marco.
Nota do editor:
Como dito no episódio passado, essa é a edição de despedida desse ano. É o momento em que eu fecho a lojinha com uma grande nota do editor sobre algo que tenha sido visualmente e socialmente impactante ao longo do ano, guardo o resto de energia para as festividades e começo a preparar os temas para o ano que vem.
Enquanto isso, vocês podem curtir o novíssimo newsletter da Entrelinha, o braço de produção de conteúdo da Plau que nem esperou a virada do ano para trazer textos quentíssimos para os seus e-mails. Se você ainda não assinou, não perca tempo e aproveite que, ao contrário de mim, eles já começaram lindos e cheios de conteúdo e imagens e excelência! =D
Como um balanço deste ano para vocês: o Tipo Aquilo finalmente ganhou uma identidade visual, algumas ações mais firmes de divulgação da newsletter para que ela chegue a mais interessados no universo das letras impressas, e 18 edições escritas com carinho, dedicação e 31.550 palavras para mais de 170 inscritos, mais que dobrando a quantidade de assinantes ao longo do ano.
Como sempre, pra vocês que tiveram essa paciência e prestaram um pouco da sua atenção no decorrer do ano, meu mais sincero muito obrigado. Sempre que quiserem sugerir temas, respostas para alguma dúvida ou questionamento, ou só dizer o que espera do Tipo Aquilo para as próximas edições, fiquem à vontade para mandar um recado. No começo de março, a newsletter volta. (=
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Este episódio foi escrito por Cadu Carvalho, que também produz essa newsletter e precisa de férias. Debora Sales faz a revisão e também precisa de férias.