Tipo Aquilo #51 – Diacríticos e diversidade
Algo que vocês não sabem sobre este que vos escreve: eu sou um saudosista do trema. Não uma saudade grande, que me motive a lutar como Dom Quixote contra os moinhos de vento do Acordo Ortográfico de 1990 (em vigor no Brasil desde 2009), tampouco discordar que a ausência dela contribui para uma ortografia unificada nos países lusófonos. Desde 1971 o uso do trema já era restrito no Brasil aos ditongos “ue” e “ui” precedidos por “g” e “q”, sinalizando que o “u” não é apenas uma vogal muda; com essa restrição, o trema era presente em menos de 1% das palavras da língua portuguesa. Por isso, meu saudosismo é apenas um sentimento de que a falta do trema em palavras como bilíngüe, pingüim, seqüência e eqüino tira um pouco do charme da escrita delas, mas isso é probleminha meu.
Com disso, o brasileiro acostumou-se aos acentos agudo, circunflexo, til e grave, presentes apenas nas vogais, além do cedilha no “ç” na língua portuguesa. Em outros países, sinais como o degredado trema (também chamado de diérese ou umlaut), o agudo duplo (umlaut húngaro), mácron, caron, bráquia (breve), anel (kroužek), ogonek, entre outros, permitiram que o alfabeto latino fosse adaptado às particularidades sonoras de línguas de todos os continentes. Essa latinização, em muitas vezes, foi conseqüência (tá, parei!) de processos cruéis de colonização e imposição da cultura ocidental, e hoje busca-se resgatar partes da história de vários povos estudando seus sistemas de escrita originários, preservando seus registros e usando a tecnologia para que compôr textos nessas línguas, com as letras e sinais necessários, seja mais fácil para mais pessoas. Por isso, a edição de hoje debruça-se sobre a história dos diacríticos.
A palavra “diacrítico” (do grego diakritikos: separativo, distinguível) foi usada apenas a partir do séc. XIX para identificar os pequenos sinais usados juntos às letras para modificá-las, mas o uso desses sinais no alfabeto latino vem desde o começo do séc. XV, como uma forma de substituir dígrafos, trígrafos e até tetrágrafos (conjuntos de letras que produzem um único som) em textos religiosos. O tratado Ortographia Bohemica, escrito entre 1406 e 1412, cria normas específicas para o uso de pequenos sinais junto a certas letras, inspirados nas marcas de cantilação usadas no alfabeto hebraico, para modificar sua pronúncia. Atribuído ao clérigo e filósofo Jan Hus, o tratado teve importante papel na normatização do uso do alfabeto com línguas da Europa Oriental, como o Tcheco, Eslovaco, Polonês e Húngaro.
O leste europeu abriga várias línguas que fazem uso recorrente de diacríticos estranhos para nós, como o caron, o ogonek os cortes em letras como o “Ł” e “Ø”. O pinyin, uma espécie de latinização de idiomas do grupo do mandarim, utiliza com frequência o caron, o acento grave e o mácron. O vietnamita é um desafio especial para designers de fontes, porque a latinização usada como padrão no país desde meados de 1920 lança mão de diacríticos incomuns para o resto do mundo, como os ganchos, e letras com dois diacríticos — acima e abaixo da letra, ou ambos acima da letra, sobrepostos. O iorubá, língua oficial da Nigéria, falada por mais de 50 milhões de pessoas no oeste da África, também utiliza letras com dois diacríticos, com pontos utilizados abaixo das vogais e da letra “s”.
O uso de diacríticos incomuns e até combinados é presente também no Brasil: a latinização de línguas indígenas brasileiras utiliza acentos que não fazem parte do nosso dia-a-dia, como o trema, caron, mácron, o til escrito abaixo das vogais, vírgulas subscritas e barras que atravessam o “i”, “u” e “g”. O levantamento feito pelo prof. Rafael Dietzsch aponta a presença desses diacríticos no registro dessas línguas, o uso em manuais e outros documentos, e os meios necessários para que essas línguas sejam escritas com a tecnologia atual. Atualmente, menos de um quarto das línguas indígenas brasileiras podem ser escritas num teclado normal de computador, sem a assistência de um layout auxiliar ou ferramenta para caracteres complexos, ausentes até mesmo do Unicode.
A produção de fontes com suporte a esses diacríticos sempre foi complicada. O desenho desses sinais é tão importante quanto o das próprias letras, conferindo harmonia e combinando formas sem sobrepujá-las. Essa preocupação é vital em fontes que visam um mercado mais amplo e global; no entanto, era comum que certos diacríticos fossem inseridos em tipos sem muita preocupação, trazendo acentos de outras fontes ou usando outros caracteres (vírgulas, apóstrofos e pontos) como acentos. Levantamentos de documentos históricos, como o da prof. Priscila Farias, mostram caminhos curiosos que compositores e tipógrafos tomaram para compensar a falta de diacríticos no séc. XIX.
Nos seus primeiros anos, o desktop publishing careceu de fontes que oferecessem amplo suporte a línguas de países fora dos grandes centros econômicos. Embora a gente disponha atualmente de uma maior oferta de fontes com os acentos usados na língua portuguesa, todo designer já teve problema com fontes que precisavam de algum acento faltando, e alguns até ensinam “truques” para compensar a falta desses diacríticos. Por um tempo, isso foi compreensível; no entanto, as ferramentas de produção de fontes suportam a produção de diacríticos e letras acentuadas há vários anos. As interfaces dessas ferramentas não eram intuitivas para iniciantes, mas a curva de aprendizado nos softwares mais recentes é bem menor atualmente. Softwares como o Glyphs, FontLab Studio, Robofont e até o FontForge oferecem certo grau de automação ao combinar sinais com as letras.
Outro fator que colabora para que mais fontes tenham suporte para mais línguas é a curadoria feita por repositórios como o Google Fonts, que cerceia a entrada de fontes latinas sem uma quantidade mínima de caracteres. O compromisso das foundries com a produção de fontes que atendam sets estendidos do alfabeto latino, tanto para varejo quanto para fontes corporativas, ajuda a consolidar um mercado tipográfico que dá mais opções de qualidade para línguas que dependem desses sinais. O conhecimento disponível para que profissionais criativos entendam não apenas as formas desses sinais, mas em quais línguas eles estão presentes e as modificações de pronúncia que eles causam, ultrapassa as paredes das pós-graduações e especializações em design de tipos.
Embora a latinização de várias línguas não seja uma história bonita de contar — geralmente associada à cristianização e ao colonialismo —, os diacríticos ajudam a preservar uma parte da cultura dos povos que usam as letras romanas para registrar seu presente e passado, e adaptá-la à sua história. Mais de 140 países usam o alfabeto latino como escrita oficial ou co-oficial, mas pouquíssimas não usam diacríticos, como o somali, malaio, indonésio e… ele mesmo: o latim. Eu sei que você esperava que eu falasse do inglês, mas apenas nos Estados Unidos o uso de diacríticos em palavras vindas de outras línguas (fiancée, façade, naïve) não é obrigatório em redações oficiais. Por isso, se você ver algum type designer que, em pleno 2020, ainda publica fontes sem acentos, considere-se livre para dirigir-lhe palavras duras e os insultos que sua eloqüência (eita escapou!) permitir. :D
Recomendações:
🎧 Podcast: Histórias da Torre – Arco 1, um spin-off do Babel Podcast que aborda a formação do grupo Indo-Europeu de línguas.
🎥 Vídeo: How To Use Accent Marks In Spanish, French And Other Languages (em inglês, com legendas) um guia de pronunciação de diacríticos em várias línguas.
🔗 Link: Diacritics, um guia de referência para o uso de diacríticos em diversas línguas. Para quem faz fontes, o Context of Diacritics é uma ótima referência para combinações de letras com acentos (agradecimentos ao lindo Álvaro Franca).
🇧🇷 Fonte brazuca: Brasilica, de Rafael Dietzsch.
Nota do editor:
Eu tô atrasado, eu sei. Fiquei feliz com o resultado da edição 50, sobre tipos brasileiros pré-2010. A avalanche de tarefas e afazeres que chegaram logo em seguida não me deixaram outra escolha, além de postergar essa edição até agora, enquanto eu reordeno a vida e recupero a saúde.
Só que, assim como vocês, eu também preciso de férias. Então, já adianto que a próxima edição será a última desse ano. Não terá nada de muito diferente, mas pode ser que seja uma nota do editor bem grande. Com tudo dando certo, no fim de fevereiro eu retomarei os boletins.
Por fim, e não menos importante: neste ano, estarei (virtualmente) ao lado de muita gente incrível da tipografia brasileira no DiaTipoX, que acontecerá no dia 11 de dezembro. Inscreva-se neste link para receber as novidades e o cronograma do evento, e prestigiar mais um encontro das pessoas que movem a tipografia brasileira pra frente. =D
Escrito em 99517.32
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Este episódio foi escrito por Cadu Carvalho, que também produz essa newsletter e ainda lembra que todas as proparoxítonas são acentuadas. Debora Sales faz a revisão e sempre pega um acento faltando.