Tipo Aquilo #49 – História: Tipos Eletrônicos
Margaret Hamilton é daquelas pessoas para quem o termo inglês “unsung hero” (herói não celebrado) seria criado, se não existisse. Ela desenvolveu o sistema de navegação e o software dos computadores de bordo usados nos módulos da missão Apollo, que levaram os primeiros seres humanos a pisarem na Lua em 1969. Margaret também foi responsável para que a alunissagem (sim, essa palavra existe) não fosse abortada a três minutos do momento programado. Um dos radares da Apollo 11 inundou o computador com dados de forma inesperada, causando uma pane que disparou o código 1202 na interface do módulo. A sofisticação do sistema permitia que, mesmo sobrecarregado, o computador continuasse rodando sistemas críticos para a nave. O time de Margaret foi importante para que, mesmo com um 1202 piscando na tela, os astronautas e os controladores de vôo mantivessem o pouso, e o resto é história.
Se hoje temos telas sofisticadas que os computadores usam para exibir todo tipo de alerta para que o usuário possa detectar e corrigir possíveis erros, até os anos 70 essas telas simplesmente não existiam. Quer dizer, até existiam, mas eram telas de raios catódicos, que ocupavam um grande espaço de qualquer aparelho e ainda não eram tão usadas em computadores. Saber que um computador rodou um algoritmo corretamente era possível graças a pequenos componentes, como lâmpadas, diodos emissores de luz e mostradores numéricos programáveis que tornaram-se clichês de uma estética retro-futurista. Hoje, falaremos de alguns desses componentes e a história dessas letras eletrônicas.
Se tem algo que eu gosto enquanto escrevo, é de fazer comparações reducionistas para que certas coisas pareçam menos mágicas do que são. Sempre digo, por exemplo, que computadores são apenas calculadoras muito rápidas. Eis mais um exemplo: enquanto você lê este texto, você está diante de uma das invenções mais revolucionárias do séc. XIX: o telégrafo. Sim, o seu computador, celular, tablet ou qualquer dispositivo que conecta-se a uma rede tem um componente que faz a mesma coisa que o telégrafo de Samuel Morse em 1844, só que muito mais rápido. Aliás, o telégrafo teve várias abordagens para mostrar o resultado do sinal elétrico que recebia. William Cooke e Charles Wheatstone, por exemplo, desenvolveram um telégrafo que mostrava 20 letras dispostas em triângulos, e um sistema de ponteiros e luzes que indicava qual letra foi transmitida. Sim, faltavam algumas letras, e não havia número ou sinal de pontuação. Esse telégrafo, aliás, foi o primeiro a ser usado por uma força policial para prender um suspeito de homicídio, no primeiro dia do ano de 1845.
Até a virada do século XX, o telégrafo tornou-se popular pela facilidade de governos e empresas de estender longas linhas de transmissão — até mesmo linhas submarinas — e conectar esses telégrafos a dispositivos que imprimiam as mensagens recebidas. Algumas máquinas de escrever eram compatíveis com o sistema de telegrafia, fazendo com que a máquina digitasse sozinha. Isso leva ao problema de que toda mensagem precisava ser impressa, até as mais desimportantes. Não que as pessoas já detestassem tanto as impressoras naquela época (e/ou talvez o inverso), mas como o sinal do telégrafo era basicamente uma corrente elétrica, talvez fosse possível usar essa mesma eletricidade para gerar uma mensagem temporária e legível em forma de luz. Não com um painel gigante de letras, mas com algum sistema modular, que pudesse conter todas as letras e números em si.
As primeiras patentes de um modelo que atendia a esse requisito surgiu em 1903, com Carl Kinsley registrando um sistema que usava segmentos de reta para formar letras e números. Isso já te parece familiar? Pois é… mesmo que Kinsley pensasse esse sistema ainda de forma impressa, o modelo alfabético proposto por ele era prático o suficiente para ser usado em pequenos tubos de vidro, com filamentos incandescentes no lugar dos segmentos retilíneos. Esse tubo de vidro se chamava (guarde este nome para a sua próxima criança) númitron, e é o avô dos chamados displays de sete segmentos. Ele não era muito prático para mostrar letras, sendo pouco usado em sistemas de telégrafos, mas resolvia facilmente os números arábicos, sendo bom para mostrar números de telefone ou indicadores em usinas elétricas.
O uso de gases ionizados para produzir luz (como explicado na edição 41) também foi utilizado para produzir dispositivos mostradores de letras e números. Um dos menos famosos, porém mais estilosos, é o tubo Nixie. Como o nome diz, é um tubo de vidro que contém gás ionizado em baixa pressão, e vários números feitos de filamentos de metal que ionizam o gás. Por causa da baixa pressão do tubo e a baixa corrente que atravessa os filamentos, apenas o entorno do cátodo fica iluminado, mostrando números e, em modelos posteriores, alguns caracteres especiais. Até hoje ainda são fabricados por entusiastas de eletrônica, mas há um bom tempo deixaram de ser utilizados na indústria. Os mostradores de vácuo fluorescente (VFD), que funcionam de forma semelhante, foram uma aplicação do uso de gases eletroluminescentes em diversos aparelhos domésticos, sendo usados até o fim dos anos 2000.
A partir dos anos 1970, os mostradores digitais tornaram-se mais práticos para o uso na indústria; os LED’s, inventados em 1927, tornaram-se substitutos práticos para os filamentos incandescentes dos númitrons, permitindo a miniaturização desses componentes e o uso de mostradores de sete segmentos em aparelhos menores, como calculadoras científicas, instrumentos de laboratório e computadores de bordo de módulos espaciais (sim, o da Apollo 11). Os sete segmentos, com o tempo, viraram oito, nove, 14 e até 16 segmentos, que permitem mostrar a totalidade das letras do alfabeto latino. As formas das letras nesses displays de segmentos tornaram-se fontes decalcáveis de letraset, e com a tipografia digital, inúmeras fontes foram produzidas baseadas nesse estilo.
Enquanto isso, os displays de cristal líquido (LCD) começavam a despontar como uma alternativa para exibição de dados digitais. Equipamentos pequenos, como relógios de pulso e calculadoras usavam mostradores de cristal líquido com caracteres de sete segmentos. Em 1983, a Sharp introduziu o display de matriz de pontos, em que cada caractere era formado por um grid de 5x7 pontos. Isso permitia exibir números, caracteres especiais e letras em caixas alta e baixa. As letras utilizadas nesse sistema foram concebidas em 1925, para serem perfuradas em cartões; contudo, tornaram-se populares com seu uso em mostradores de cristal líquido e também em displays de LED e VFD, que conseguiam reproduzir com facilidade o grid de 5x7 em que os caracteres eram exibidos.
Esses displays tornaram-se referência visual de tecnologia e futurismo no design gráfico, sendo usadas ipsis litteris ou interpretadas por outros designers de fontes. Wim Crouwel, por exemplo, desenvolveu sua New Alphabet para que fosse facilmente exibida em monitores de CRT de máquinas de fotocomposição, sendo inspiradas nos números e letras produzidos nesses displays de segmentos. O uso de retas e estruturas modulares, presentes também em fontes voltadas para OCR (explicado na edição 40), tornou-se comum em fontes que buscavam esse apelo tecnológico. Atualmente, dezenas de fontes digitais disponíveis para venda ou download gratuito reproduzem ou reinterpretam as letras utilizadas nos displays de segmentos e de matrizes de pontos.
Dos anos 80 em diante, os mostradores passaram a contar com LED’s e transístores de LCD menores a cada ano. Nos anos 1990, esses painéis alcançaram a qualidade de imagem dos monitores de CRT, tornando-se a nova plataforma para tipografia digital. Atualmente, essas pequenas telas de LCD, LED e OLED estão presentes em quase todo aparelho eletrônico, e reproduzem fontes digitais com facilidade. Makers e entusiastas de eletrônica ainda buscam esses mostradores como uma forma simples de mostrar resultados em circuitos caseiros. Além de uma alternativa prática e barata — esses mostradores custam poucos reais — para o aprendizado de eletrônica e robótica, a presença de mostradores de sete segmentos e matriz de pontos serve também como uma reverência à importância que seus caracteres têm para o nosso estilo de vida contemporâneo.
Recomendações:
🎧 Podcast: Muito Além dos Robôs #2, com Pedro Antunes e Maria Paula Abreu conversando com a Prof. Débora Garofalo sobre a cultura maker na educação.
🎥 Vídeo: Apollo 11’s journey to the moon, annotated, (em inglês) um resumo da jornada da Apollo 11, desde seu lançamento até o pouso na Lua.
🔗 Link: 3Quarks Segment Display, um experimento em JavaScript que permite criar e editar displays de segmentos para uso em navegador.
🇧🇷 Fonte brazuca: Ghouls, de Rafael Nascimento.
Nota do editor
O que você estava fazendo quando o Facebook caiu e levou seus serviços junto? Alías, o Facebook faz parte de um assunto que, um dia, eu quero saber escrever melhor, sobre empresas grandes demais. Não que Instagram e Facebook realmente tenham feito falta à humanidade ao longo de seis horas de indisponibilidade, mas a queda do WhatsApp foi fatal para milhares de pequenos negócios que dependem do aplicativo de mensagens para falar com clientes, receber pedidos e fechar orçamentos.
Falar do Facebook é complicado desde do escândalo do uso de dados pessoais de usuários pela Cambridge Analytica, e só piora a cada ano. O testemunho da ex-funcionária Frances Haugen, contando as diversas práticas anticompetitivas e nocivas para os usuários, deixa bem claro para quem e quais ideais Zuckerberg e os diretores do Facebook realmente trabalharam nos últimos anos, passando por cima das pessoas e das instituições.
Não que as outras big techs sejam santas. Google, Apple, Microsoft, Amazon… todas operam com a mentalidade de destruir os concorrentes, garantir monopólios e assegurar que a interoperabilidade entre seus serviços basicamente não exista. Por exemplo, aquele “maravilhoso” Facetime, da Apple, que tinha todo potencial para ser um protocolo acessível de comunicação, mas… virou um maravilhoso protocolo de comunicação apenas entre donos de iPhone.
Pense também na dificuldade em migrar de iOS pra Android e vice-versa, ou de operar entre macOS e Windows. Eu não quero propôr que você tente abrir mão dos produtos e serviços delas porque… não tem como. Sério. Mesmo que você instale uma distribuição Linux e use apenas software livre, você navega na Internet e usa serviços hospedados no Google Cloud, Amazon Web Services e Microsoft Azure. Esses três serviços de infraestrutura concentram quase todo o tráfego de dados da Internet, desde a hospedagem física a serviços de DNS.
Não há muito o que fazer, além de assegurar o controle e a privacidade do conteúdo que a gente produz, e torcer para que essas empresas sejam obrigadas a garantir alguma transparência. Eu sou a favor de que elas sofram alguma regulação e alguns de seus serviços sejam desmembrados; a necessidade de manter-se grandes e constantemente tentarem destruir umas às outras e a pequena concorrência é o que mata a inovação que fez essas corporações serem grandes.
Escrito em 99374.25
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Este episódio foi escrito por Cadu Carvalho, que também produz essa newsletter e descobriu que os Correios ainda enviam telegramas por R$ 8,90. Debora Sales faz a revisão e, no último aniversário do Cadu, deu um suporte de solda de presente pra ele.