Tipo Aquilo #48 – Com quantas fontes eu vou?
Se você foi uma pessoa socialmente apreciada no colégio, deve ter respondido aqueles cadernos que passam de mão em mão com perguntas que, num segundo você tem vergonha de responder, n’outro já está respondendo porque você é adolescente e só se vive uma vez. Perguntas como “quem você pegou/pegaria?” ou “onde foi/será o primeiro beijo?”, respondidas anonimamente, mas qualquer xeroque rolmes sabia quem foi, e talvez essa fosse a graça desses cadernos. Se esse caderno nunca passou pela sua mão… eu tinha uma notícia ruim pra te dar, mas acho que você já sabe. Tudo bem, todos viramos adultos funcionais um dia.
Uma pergunta comum nesses cadernos, e em outras situações da vida, é sobre aquela coisa que você levaria para uma ilha deserta. Fosse por algum motivo de sobrevivência ou para não perder a única recordação física de algo importante, todo mundo tinha algo para levar. Vamos agora para um exercício de pensamento: imagine que você está se formando em design, e que durante sua formação, um monte de gente colocou na sua cabeça que trabalhar com poucas fontes é uma lei sagrada e que, no mundo ideal, seu futuro como profissional criativo depende apenas de cinco fontes. Você sabe pensar que cinco fontes seriam essas?
Calma. Não precisa gastar tempo pensando nisso ainda. A pergunta não é quais fontes, mas sim se você saberia escolher. Por óbvio, não há resposta certa. De forma semelhante à mudança das roupas sob medida para a moda de fast fashion, fomos acostumados pela convivência com ferramentas digitais à abundância de fontes para escolher. Se puder, abra uma janela do Word ou do Google Docs, e abra a paleta de fontes: são dezenas de opções, cada uma feita para um propósito distinto. Mesmo que a gente não use todas elas, parece que, se essas opções todas não estiverem lá, tem algo errado no aplicativo. Um bug, talvez, ou um trabalho inacabado dos desenvolvedores.
Para ter muitas fontes, num passado mais ou menos distante, você precisava de muito espaço. Armários com várias gavetas, cada uma contendo um desenho de letra num tamanho e estilo específico. Uma porção considerável do espaço físico de uma oficina tipográfica era tomada por vários armários, necessários para todo tipo de cliente e demanda: de pequenos cartões de visita a faixas com letras para serem lidas de longe. Com a fotocomposição, esse espaço caiu muito, limitando-se a discos usados na compositora. Com um disco, era possível modular o tamanho de letra desejado, mas a limitação de estilo persistia. Com o desktop publishing, as fontes dificilmente ocupavam muito espaço no mundo de bits dos discos rígidos.
Usar mais de uma fonte numa letra era difícil, mas não era incomum. Gráficas mais abastadas utilizavam letras diversas em pôsteres e peças de grande divulgação como forma de mostrar certa opulência, afinal fontes custavam caro (e ainda custam). Utilizar estilos de texto diferentes em cada linha era uma forma de fazer a peça destacar-se das demais, num tempo em que era difícil imprimir qualquer coisa além de letras. Às vezes, rolava combinar duas cores num pôster como efeito decorativo. Essa tendência, com o passar dos tempos, foi substituída por uma mentalidade voltada ao entendimento do design gráfico como uma disciplina de construção de sistemas visuais complexos e centrados na ideia de uma identidade coesa.
Essa visão difundida pelo modernismo tinha seus motivos para uma série de regras que limitavam o uso de fontes ao estritamente necessário. Conforme mais organizações desenvolviam sistemas de identidade visual, os manuais especificavam com certa obsessão as fontes permitidas para uso, que davam a “voz certa” para a comunicação institucional e davam forma a um sistema de design conciso. Com o tempo, essa visão tornou-se uma norma no ensino de design gráfico, passada de professores para alunos e entre pares de profissão, porém sem muita justificativa além de evitar uma possível poluição visual do projeto. Dezenas de artigos introdutórios à tipografia recomendam o uso de, no máximo, duas famílias de fontes pra todo tipo de projeto, com duas boas intenções: a primeira, de ensinar critérios de pareamento de fontes; a segunda, de minimizar a possibilidade de erros… pelo menos no lado tipográfico do projeto.
O documentário “Helvetica” (2007) traz um símbolo desse pensamento: Massimo Vignelli. O designer milanês teve um grande impacto no design gráfico moderno, com seu trabalho presente até hoje na paisagem urbana de várias cidades, estudado em vários livros e… ok, vamos para a obsessão dele. Vignelli desenvolveu um grande corpo de trabalho dispondo de apenas seis famílias de fontes: Helvetica, Garamond, Bodoni, Century, Times New Roman e Futura. Apesar de ter vivido numa época antes dos computadores no design, Vignelli já reclamava da abundância de fontes disponíveis, e de como o excesso de fontes era usado para compensar a falta de apelo visual do projeto. Com o desktop publishing, o designer italiano traduziu esse pensamento em um pôster que declarava a poluição visual causada por milhares de fontes como uma ameaça.
Se pudesse, Vignelli teria endereçado esse pôster (talvez, a exibição inteira) a uma pessoa: David Carson (também visto no documentário). A facilidade de usar e manipular letras na fotocomposição e no desktop publishing abriu caminho para uma produção gráfica experimentalista, que não tinha vergonha de misturar fontes e fotografia de forma caótica. Neville Brody, Stefan Sagmaister e outros também foram difusores dessa escola de design gráfico que marcou os anos 90 até aqui no Brasil. Em essência, contrapor-se a princípios do modernismo era o guia para essa turma do barulho.
No entanto, usar uma miríade de fontes diferentes num projeto é bem mais difícil do que parece. Não se trata apenas de abrir o seletor de fontes e escolher randomicamente. Bethany Heck, em seu artigo sobre o valor do design multi-tipográfico (traduzido em português pela Plau), advoga pelo uso de três, quatro ou até mais fontes numa interface (impressa ou digital), de forma que cada fonte tenha um propósito facilmente distinguível (sim, é possível ter tantos propósitos diferentes, à medida que o design torna-se mais complexo), e que essa distinção torne-se mais fácil pelo uso de mais uma fonte. De certa forma, os guias de pareamento de fontes disponíveis podem ser usados para harmonizar mais de duas tipografias, mas também não podem ser levados ao pé-da-letra. Alguns sustentam que combinar Helvetica e Univers, por exemplo, não faz sentido por serem similares demais. Bem…
Você pode ter seus motivos para não gostar do Quentin Tarantino, por exemplo, e eu entenderei todos eles. Só que a sequência de créditos iniciais de “Bastardos Inglórios”, por exemplo, é um bom exemplo. Ela junta quatro fontes (Giza, Helvetica, Avant Garde e Friz Quadrata), mais a caligrafia do próprio diretor no título do filme, mais a Bookman entre capítulos. Essa “bagunça” toda faz sentido no universo do Tarantino, e esses detalhes acabam trazendo mais valor para o filme. Um design multi-tipográfico, no entanto, não se trata apenas de enaltecer o caos; ele abraça a diversidade de fontes à medida em que cada uma tenha um significado para o projeto e ajude a estrutura-lo apropriadamente.
No design do dia-a-dia, há espaço para trazer mais fontes para a brincadeira. Ao contrário de regras de pareamento que focam no contraste entre fontes (uma mais pesada e outra mais leve), Heck aconselha que o contraste vem, na verdade, do conteúdo e hierarquia, e que há tanto espaço para novas fontes quanto existirem formas de estruturar conteúdo dentro de uma interface. Um design multi-tipográfico parece o oposto do que a maioria dos UX designers buscam em uma interface, porque cada fonte tem dois custos bem pesados: tráfego de dados, e licenciamento. Em geral, fontes não são arquivos muito pesados, mas em aplicativos que rodam no navegador, qualquer byte pesa. No entanto, o uso consciente de fontes diferentes numa interface pode tornar-se um benefício para o usuário, com um produto menos insosso.
A quantidade de fontes que surgiram nas últimas décadas, por consequência dos formatos de produção e consumo de tipografia digital, favorecem a quem busca uma diversidade de fontes com propósito. Apesar disso, há quem ainda insista em ter sua paleta fechada de poucas fontes para todo tipo de projeto, e não é errado usar apenas as ferramentas em que se confia. No entanto, é importante mostrar que isso é uma regra não-escrita, propagada aos quatro ventos, mas quase nunca pelos motivos certos. Além disso, convenhamos que quanto mais se aprende e se gosta de tipografia, mais dá vontade de usar fontes diferentes e criar um repertório conciso, baseado no tipo de projeto e linguagem que se deseja explorar com o tempo. Entendo quem entende o Vignelli, mas a vida é curta demais pra usar apenas seis fontes. ;)
Recomendações:
🎧 Podcast: Tipo Entreletras #8, com Diego Maldonado e Elaine Ramos conversando sobre a produção da versão em português do livro “Elementos do Estilo Tipográfico”.
🎥 Vídeo: Typography Dojo: Combining Typefaces, video-aula em inglês com Bethany Heck mostrando dicas de combinação de fontes.
🔗 Link: O valor do design multi-tipográfico, tradução em português do artigo da Bethany Heck sobre o uso de múltiplas fontes em um projeto gráfico único.
🇧🇷 Fonte brazuca: Lygia Sans, de Flavia Zimbardi.
Nota do editor:
Estou mais que atrasado para esta edição, mas acho que vocês já repararam na grande novidade. O Tipo Aquilo finalmente começou a ter uma identidade visual, que vocês poderão ver em outros lugares daqui pra frente. Um deles é no Instagram @tipoaquilonews, em que eu pretendo postar trechos de cada edição para ajudar a atingir mais pessoas, quem sabe.
O espeto de pau da casa do ferreiro é a tipografia dessa nova identidade. A Bastão, fonte inspirada em muros e letreiros comerciais de fachada, ainda está em desenvolvimento, mas enquanto ela cresce e ganha forma, vocês verão ela sendo testada e aplicada ocasionalmente. Depois explico mais sobre ela; por ora, espero que gostem, e até a próxima quinzena. =)
Escrito em 99336.63
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Este episódio foi escrito e produzida por Cadu Carvalho. Revisão de Debora Sales.