Tipo Aquilo #47 – Tipos móveis: o legado preservado
Há algumas semanas, eu indiquei o podcast Primeiro Contato, que narra a gênese e crescimento do mercado de jogos de computador no Brasil. Os dois primeiros episódios narram alguns dos efeitos danosos que uma reserva de mercado mal conduzida trouxe para a economia; em resumo, havia pouco incentivo para a criação de tecnologia nacional e toda restrição possível para importação de tecnologia estrangeira. Isso não limitou-se a computadores: a reserva de mercado atingiu dezenas de indústrias e, quando o governo Collor pôs fim a essa política, no começo da década de 1990, a obsolescência do setor produtivo ficou exposta.
No setor gráfico, houve uma corrida para adquirir equipamentos novos. Os computadores voltados para desktop publishing, antes escassos, tomaram o lugar das máquinas de escrever. Uma grande e abrupta renovação do parque gráfico nacional, conduzida por grandes gráficas e periódicos, tirou de cena as oficinas tipográficas e as máquinas de composição quente, como os velhos linotipos. No entanto, ao invés de ficarem esquecidas, as velhas tipografias ganharam um novo papel: hoje elas ajudam a contar histórias, criar experiências e dar base à educação tipográfica de jovens designers.
Nos últimos anos, iniciativas de resgate de coleções de tipos móveis e maquinário despontaram no Brasil, com meios e fins diferentes, mas uma coisa em comum: a preservação da manualidade na produção gráfica. O aspecto de algo feito à mão, com certo zelo, e motivos que embasam tanto os acertos quanto os “erros” dos impressos. A tipografia “manual”, feita com tipos móveis entintados e prensados num prelo ou numa impressora, permite ao designer um raciocínio mais concreto sobre como ele preenche o vazio do papel com tinta. As dezenas de ferramentas e recursos que os aplicativos de edição gráfica oferecem tornam-se menos etéreas com o amparo da experiência com a impressão manual. Por isso, visitas a oficinas tipográficas são um programa recomendado em faculdades de design gráfico e publicidade.
Entrar numa oficina tipográfica é visitar um lugar em que o tempo corre de forma diferente. É um lugar sagrado, no famoso texto de Beatrice Warde. Mesmo quando o impressor está tocando um projeto com prazo curto, cada processo exige paciência para que saia de forma (im)perfeita. Andar por gavetas até escolher a fonte certa; formar o texto tipo por tipo, linha por linha; preencher espaços vazios e preparar o clichê para o teste no prelo. Tudo isso exige tempo, paciência e consentimento para o nível de qualidade que se deseja da impressão. É importante destacar que essa “qualidade” não representa um acabamento impecável: em certos projetos, as imperfeições e acidentes causados pelo uso de um material já castigado pelos anos de uso é exatamente o que se deseja, pois tentar reproduzi-los em computador acaba sendo mais trabalhoso e artificial.
Comecemos a falar das letterpresses comerciais, como a Letterpress Brasil, a Carimbo, a Platen Press e outras Brasil afora que fazem dos tipos móveis e máquinas antigas um diferencial para produção de peças gráficas de pequena tiragem com grande apuro. Um charme das letterpresses é criar clichês customizados. Esses clichês são placas de metal com a arte a ser impressa em alto relevo; essa arte pode ser feita a partir de arquivos de desenho vetorial, o que permite usar fontes digitais numa impressora tipográfica. A limitação de usar poucas cores é a graça desse meio de impressão, já que cada cor desejada precisa de um clichê próprio, encarecendo o custo final.
Do lado oposto, pequenas tipografias usam suas limitações técnicas como um charme para projetos com outros fins, que dependem dessas falhas e da imprevisibilidade da impressão para uma linguagem própria. Um destaque é a Gráfica Fidalga, que faz do “lambe-lambe” uma linguagem para paisagens urbanas, interiores, cartazes, capas de livros e murais com o artista Luis Bueno. As composições caóticas com tipos de madeira de fontes misturadas, cores contrastantes e adereços diversos roubam a atenção e fogem de certos dogmas de escolas de design gráfico. A simpatia estereotipada do povo e a crítica social encontram no lambe-lambe um meio perfeito de expressão gráfica.
Um lugar que merece uma menção honrosa deste que vos escreve é a Oficina Tipográfica São Paulo, que contribui ativamente para a preservação e resgate da tipografia de tipos móveis e o seu uso em projetos contemporâneos. Sob a batuta de Cláudio Rocha e Marcos Mello, a OTSP conduz visitas e workshops para todo interessado em sujar as mãos e aprender a lidar com tipos e máquinas de impressão, ajuda a preservar máquinas e tipos móveis, e está direta ou indiretamente envolvida em vários projetos de preservação de oficinas tipográficas no Brasil. A OTSP também é a impressora das capas da Tupigrafia, a longeva revista de tipografia brasileira produzida por Claudio e Tony de Marco.
Os laboratórios de tipografia de algumas faculdades brasileiras, como a USP e UFPE, ajudam os alunos de design, publicidade e arquitetura a terem contato com os tipos móveis, tintas e o maquinário dessas antigas oficinas. A preservação, catalogação e uso dos materiais dos laboratórios acadêmicos de tipografia é objeto de projetos de pesquisa e extensão para futuros pesquisadores e produtores gráficos. O contato com os tipos móveis durante o curso ajuda também a tirar do aluno a noção de que o computador é estritamente necessário para produção gráfica, ajudando-o a encontrar outros caminhos, como também podem servir a serigrafia, risografia, entre outros.
Por fim, a preservação e uso dos tipos móveis para criação de peças gráficas com o sabor que só as letras gravadas em madeira e metal e consumidas pelo tempo ajuda a unir amigos e construir histórias, calcadas no legado da tipografia. Grupos como o Grafatório de Londrina e o 62 Pontos de Belo Horizonte surgem numa crescente de experimentação gráfica com tipos móveis e outros meios, como uma forma de criar cartazes, livros e outros objetos, disseminar a palavra da tipografia e unir amigos em torno de um interesse comum. A venda de cartazes e impressos feitos com tipos móveis torna possível a existência e subsistência desses grupos, especialmente nos últimos meses.
Preservar e manter em uso essas máquinas e tipos é algo importante para a nossa memória gráfica. São equipamentos que imprimiram pedaços da história da nossa sociedade, e que merecem mais tempo para contar histórias que apenas a paciência de juntar blocos de metal ou madeira com letras gravadas, entintá-las e colocar numa máquina para produzir uma pequena tiragem são capazes de produzir. Histórias que carregam nostalgia, que buscam um lugar em novos tempos, que trazem novos olhares, ou que apenas enchem a gente de encanto. Como a história da Sophia, a admiradora de tipografia que, quando se deu conta, estava imprimindo o pedido de casamento do seu namorado, Vítor.
Recomendações:
🎧 Podcast: Visual+mente #130, com Rafael Ancara entrevistando o coletivo Grafatório em Londrina.
🎥 Vídeo: Prelo, documentário curta-metragem sobre o Seu Matias e o funcionamento da sua gráfica, em Belo Horizonte.
🔗 Link: A prática contemporânea da impressão tipográfica no design gráfico brasileiro, dissertação de mestrado do Prof. Rafael Neder sobre o uso da impressão tipográfica na produção de design gráfico.
🇧🇷 Fonte brazuca: Graúna, de Gabriel Figueiredo.
Nota do editor:
Primeiramente, dando parabéns a mais type designers brasileiros fazendo sucesso, com Emmerson Eller e Sandro Fetter reconhecidos como excelência no Gerard Unger Scholarship desse ano, promovido pela TypeTogether.
Segundo, caso você tenha um domínio de audição em inglês, você pode participar gratuitamente do TypeWknd deste ano, com diversas palestras e oficinas sobre temas diversos ao redor da tipografia.
Voltando um pouco ao tema desta edição: pouco antes da pandemia começar, em novembro de 2019, estive em Belo Horizonte participando do CIDI 2019. Em um momento livre, tive a oportunidade de visitar dois lugares onde se respira tipografia, lá na Santa Efigênia.
Um deles foi a Tipografia Matias, onde o documentário Prelo foi rodado e o Seu Matias continua a fazer trabalhos e ensinar as manhas para quem se encanta com as possibilidades da impressão tipográfica. Pouco distante, fica a Tipografia do Zé, onde o 62 Pontos roda seus trabalhos. Foi lá que aconteceu o pedido de casamento que fecha a edição de hoje, e eu consigo imaginar o quanto aquele lugar colaborou para que o momento fosse especial.
Se você nunca teve a chance de visitar uma oficina tipográfica e manusear tipos móveis, eu recomendo muito que o faça quando for seguro o suficiente. Pouco a pouco, as oficinas que existem estão retomando seus workshops, e ter contato com esses tipos, as máquinas, tintas e outros equipamentos é benéfico para todo tipo de designer. Como UX, posso dizer que o domínio da composição visual em todo tipo de tela fica mais apurado com um domínio melhor da tipografia.
Pra quem é realmente apaixonado, não é raro aparecer coleções de tipos móveis e máquinas de gráficas antigas à venda. Para quem tem vontade e dinheiro disponível, é possível começar um trabalho artesanal com tipos móveis e aprimorar a técnica com o tempo.
Escrito em 99279.18