Tipo Aquilo #41 — As letras de vidro e neon
A virada do século XX na Europa foi um momento em que muitas transformações que aconteciam lentamente passaram a andar com o pé no acelerador. O desenvolvimento científico, os acirramentos de tensões diplomáticas e a exploração colonial, movida a violência e expropriação, andavam a passos nunca vistos na história. O continente vivia uma segunda fase da Revolução Industrial que celebrava várias invenções recentes, como a lâmpada incandescente, telégrafo, automóveis e outras inovações; ao mesmo tempo, abandonava as velhas tradições de guerra, movendo-se para um estado tecnológico que, em 1914, eclodiria no grande moedor de carne que virou a primeira guerra mundial.
Além de moer soldados em trincheiras e terras-de-ninguém, os desdobramentos do assassinato do arquiduque austríaco Franz Ferdinand trucidaram o que os franceses chamaram a posteriori de Belle Époque, o período de prosperidade econômica e cultural da França entre 1860 e 1914. Nos finalmentes dessa época, o inventor francês Georges Claude demonstrou pela primeira vez um novo meio de iluminação, mais versátil e eficiente do que as lâmpadas incandescentes da época. No Salon de l’Automobile et du Cycle de 1910, o mundo conhecia as lâmpadas de tubos de neon.
O gás neônio e o princípio da obtenção de luz pela sua ionização foram demonstrados pela primeira vez em 1898, pelos cientistas ingleses William Ramsay e Morris Travers. Claude, por sua vez, foi pioneiro em criar um modelo industrial de produção de lâmpadas de neon, registrando as primeiras patentes e criando um monopólio rentável no começo dos anos 20, após a grande guerra. Pelas mãos do publicitário Douglas Leigh, a Times Square tornou-se a grande vitrine da iluminação em neon, com tubos coloridos redefinindo a paisagem urbana de New York e, aos poucos, todas as grandes cidades norte-americanas.
(Claude, mais tarde, ficaria conhecido como ce collaborationniste bâtard, sendo condenado a prisão após a liberação de Berlim no fim da segunda guerra mundial)
Além de indicar um progresso econômico desses centros urbanos, a iluminação de neon criou uma linguagem própria, baseada nos contornos luminosos que os tubos criavam na penumbra. O espectro de cores dos tubos dependiam dos gases contidos sob alta pressão nos tubos — o próprio neônio, por exemplo, emitia uma luz avermelhada; a mistura do neônio com vapor de mercúrio produzia uma luz azulada, enquanto as misturas com argônio e hélio produziam luzes amarelas. As letras de neon, projetadas por designers de iluminação, precisavam ser feitas com contornos únicos, sem encontros de traços. Imagine que os tubos são como fios elétricos, em quem há um lado positivo, um lado negativo, e todo o caminho que os elétrons precisam percorrer.
Essa característica obrigava projetistas e vidraceiros a serem criativos e recorrerem a truques frequentes até hoje. Quando as palavras eram curtas o suficiente para serem feitas com apenas um tubo, os espaços entre letras são encobertos por uma substância escura; letras como “A”, “E”, “F”, “H”, “K” e outras minúsculas como “h”, “m”, “r” e “t” precisavam de alguns truques de sobreposição, como pedaços de vidro no mesmo traço da letra, para serem representados.
Outra forma comum de uso de neon para iluminar letras era fazer contornos, geralmente de caracteres sem serifa, mas mesmo essa aparente facilidade em reproduzir os contornos de uma letra pronta exigia alguns truques. Por isso, além de grandes letras maiúsculas, a caligrafia cursiva também era uma importante referência para os letreiros de tubos de vidro, já que a maioria das letras cursivas naturalmente provinham de um traço contínuo. Falando em traços contínuos, era importante manter todos os circuitos funcionando, ou provavelmente seu letreiro poderia ficar com várias letras apagadas ou piscantes.
Um problema recorrente da iluminação em neon era a fragilidade dos tubos de vidro: caso um deles quebrasse, ou as emendas dos circuitos no vidro deixassem gás vazando, todo o trecho de luz precisaria ser trocado. Embora um letreiro de neon bem-feito dure muitos anos, o custo de reparo era alto, já que envolve confeccionar um novo tubo, injetar gás em alta pressão e… enfim, você entenderam. Na verdade, até hoje esse custo é alto, mas deixemos isso um pouco mais pra frente.
Nas décadas seguintes, a iluminação de neon espalhou-se mundo afora, ajudando a criar uma linguagem própria para esse tipo de iluminação e dando suporte para o estilo streamlined de design norte-americano. Sim, aquele em que até uma torradeira parece asa de avião. Nas décadas seguintes, contudo, o uso do gás neônio e de outros elementos tronou-se bem menos comum, e o próprio uso de letreiros de neon perdeu a força no final do século passado, dando lugar ao uso de letras-caixas de acrílico e impressão em vinil como opções mais baratas, e painéis de vinil e de LEDs policromáticos em centros urbanos mais abastados. A fidelidade às assinaturas de marcas, regidas pelos manuais de identidade visual, tornou essas opções mais bem-quistas pelas empresas.
No entanto, o uso do neon ainda é presente. Embora não existam tantos vidraceiros especializados quanto antes, ainda existem oficinas de vidro que criam placas e letreiros para comércios locais que buscam um apelo nostálgico. É comum encontrar letreiros de “neon” para decoração doméstica, mas que provavelmente não utilizam mais gases ionizados para produzir luz; os fios e fitas de LEDs tornaram-se uma opção viável para produzir letreiros e placas luminosas, ao passo em que ela ainda preserva a linearidade dos antigos letreiros de vidro.
Várias instalações em galerias de arte revisitam o neon e usam a linguagem da iluminação de tubos como expressão artística. Artistas como Tracey Emin, Glenn Ligon e a brasileira Regina Parra utilizam da iluminação colorida como suporte para suas instalações. Na cultura visual pop, o neon é usado para dar um aspecto egóico e nostálgico a ambientes e cenas; em “Taxi Driver” de 1976, Travis Bickle reflete sobre a decadência da sociedade sob as luzes coloridas das avenidas. O quarto de Selena Kyle em “Batman Returns” (1989) também conta com um letreiro ilustrando sua transição para Mulher-Gato. Também tem “The Neon Demon”, de 2016, para… referências mais óbvias.
A iluminação em neon também foi muito influente para a ficção científica. Um dos conceitos iniciais do filme “Tron”, de 1982, era o de representar “guerreiros de neon” lutando em um ambiente cibernético onde tudo era possível, e a mistura de uma computação gráfica muito primitiva com efeitos práticos faziam os grids e trilhas de circuitos brilharem como faixas de neon. No mesmo ano, “Blade Runner” abusava do neon para definir como seria Los Angeles no futuro de 2019 (!!), especialmente as áreas mais marginais, o que ajudou a semear essa iluminação dentro do estilo cyberpunk.
(é a última vez que eu uso essa palavra aqui, antes que esse e-mail também fique cheio de bugs; nenhum programador polonês foi ferido na produção deste texto)
E se a caligrafia e tipografia foram influências para as letras de vidro e gás, a iluminação de neon acabou influenciando a tipografia de volta, com fontes que reproduzem o aspecto longilíneo e nostálgico dos letreiros. Algumas fontes apoiam-se no neon como parte de algo maior, uma estética art déco das décadas de ascensão desses letreiros; outras tentam ser mais literais ao estilo das letras de vidro, replicando os truques utilizados nas placas e buscando um equilíbrio nessas regras.
É complicado encerrar esse assunto de neon porque, na verdade, ainda tem muita coisa que pode ser falada sobre isso. Desde o impacto nas paisagens urbanas que o neon provocou, até o uso subversivo do neon no meio artístico, há muitas formas de prolongar esse assunto e falar ainda mais, mantendo o mesmo fascínio que Morris e Travers, no final do século XIX, tiveram ao ver aquele gás brilhando rubro, como um fogo líquido.
Recomendações:
🎧 Podcast: Viva Sci-Fi #27, com Morgana Pauletti, Tiago Meira e Marcos Keller conversando sobre “Neuromancer”, o clássico de ficção científica de William Gibson que ajudou a disseminar o estilo cyberpunk n4 cu1 7u5/\
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na cultura pop.🎥 Vídeo: How Neon Signs Are Made for Restaurants, uma demonstração ao vivo de como são feitos letreiros de neon.
🔗 Link: The Neon Museum, um museu de Las Vegas que reúne em seu acervo vários letreiros elétricos desativados do comércio local, contando com passeios guiados pelo neon boneyard.
🇧🇷 Fonte brazuca: Mori Gothic, de Caio Kondo e Satsuki Arakaki.
Nota do editor:
A primeira versão desse texto trazia uma lembrança minha de infância. Eu cresci em Taguatinga, DF, e, de vez em quando, tinha a oportunidade de ir em Brasília para qualquer coisa; até os anos 90, uma marca da paisagem urbana da capital federal era os letreiros de neon do Conjunto Nacional. Eu achava legal, parecia algo futurista e divertido, um pedaço de Los Angeles 2019 — não tinha assistido Blade Runner na época, mas acho que eu imaginava algo assim.
Acabei deixando esse trecho aqui porque tenho dúvidas se hoje eu acharia tão fascinante quanto naquela época. Digo… eu acho neon algo legal, mas tem que ser legal ao ponto de ser um ponto de brilho multicolorido no meio de uma cidade tombada como patrimônio cultural? Ainda mais Brasília, que tem uma linguagem urbana bem característica. São coisas que a gente envelhece, pensa mais a respeito e descobre novos pontos de vista. Como é algo que bate a porta da arquitetura, achei melhor deixar aqui, sem que eu realmente precise concluir algo a respeito.
A propósito: esse mural de neon não existe mais. Viraram placas de vinil impresso retroiluminado. Sem graça, né? Agora são só painéis gigantes lembrando que, não importa o quão tombada e planejada sua cidade seja, a publicidade estará ali, te lembrando de coisas que você provavelmente não precisava lembrar. O neon pelo menos disfarçava isso com algum charme… mas se você discorda, é muito provável que esteja com razão. Nostalgia nenhuma vale mais que o bem-viver nas cidades.
No mais, fiquem seguros, fiquem bem, e nos vemos na próxima quinzena. Beijinhos científicos para vocês. ;)