Tipo Aquilo #35 – Por quê precisamos de mais fontes
Como prometido, voltamos para mais uma temporada do Tipo Aquilo. Continuo desejando a vocês que estejam bem, sãos e salvos em casa na medida do possível, até que as vacinas cheguem a todo mundo. ;)
O título desta edição, se vocês repararam bem, não é uma pergunta. É um enunciado. Por mais que existam dezenas de foundries espalhadas pelo mundo, que mais type designers sejam formados todos os anos e que vários repositórios de fontes tenham amplos catálogos, o mundo precisa e precisará de mais fontes por muito tempo. Até que leitores continuem existindo, eu diria. Kris Sowersby, da Klin Type Foundry, e a TypeTogether têm artigos muito bons sobre esse assunto, e usarei eles como base para este texto.
Comecemos pelas respostas mais óbvias. A primeira serve também para outras coisas que parecem que já existe demais delas. Músicas, pinturas, esculturas, filmes, livros e demais expressões artísticas são responsivas ao zeitgeist, conjuntura social ou como você queira definir a força invisível que faz com que discutamos e importemo-nos com coisas diferentes ao longo do tempo. Fontes também alinham-se com o tempo em que são produzidas. Os desenhos das letras representam muito mais do que as letras em si; elas refletem a visão da sociedade sobre o ato da leitura e sua importância, e funcionam como um retrato de uma população, em termos do que traz-lhe orgulho, otimismo, progresso ou (auto)crítica.
A segunda e última resposta óbvia é a tecnologia. A história da tipografia contém diversos meios de reprodução de tipos desenvolvidos desde Gutenberg: tipos móveis, linotipia, letras de decalque e fotocomposição são algumas das que precedem a tecnologia das fontes digitais, de longe a mais usada atualmente. Mesmo quando se resgata uma fonte de uma tecnologia antiga, existe a criação de uma fonte nova que, por mais fiel que tente ser, não deixa de ser uma interpretação, uma visão de um novo mundo projetada para demandas inexistentes até então.
Além de atender novas demandas, cada nova tecnologia forma uma linguagem, adquirida por novos type designers com o tempo. Não falo da linguagem alfabética, que muda sutilmente por outros caminhos; falo de novos procedimentos técnicos que abrem possibilidades novas, e também da reinterpretação de certos requisitos e práticas do ofício de criar tipos para propósitos diferentes do que os originou. Entre alguns exemplos, existem as produções da Emigre e da LettError que subvertiam processos da criação de fontes digitais, quando esta ainda estava em sua maturação.
Pensando apenas nessas respostas óbvias, os novos type designers poderiam ser vistos apenas como gente insatisfeita com a produção existente e que, movidos pela própria vaidade, vão lá e criam fontes novas só porque sim. Isso já seria um bom motivo para que novas fontes ainda sejam criadas, só que a realidade é diferente. Novos type designers existem porque, entre outros motivos: há demandas por certas fontes muito maiores do que há alguns anos; existem tecnologias novas que ainda estão em sua infância; existe uma visão muito mais madura sobre a importância história e estratégica da tipografia entre as marcas e seus colaboradores; e existe uma grande dívida histórica do dito Ocidente Cultural com o resto do mundo que a tipografia pode ajudar a reduzir.
Começando pelo último ponto, que acho mais simples de explicar: quando alguém pensa que “talvez existam fontes demais”, a pessoa inconscientemente reproduz o pensamento pragmático de que uma fonte é apenas um produto que resolve um problema, e generaliza um recorte de um mundo que usa o alfabeto latino para comunicar-se verbalmente. A verdade é que existe muito espaço para fontes em outras escritas, como cirílico, grego, devanágari, gujarati, CJK (chinês-japonês-coreano), árabe, tamil, nbisidi e muitos outros sistemas de escritas existentes, e há a necessidade de formar type designers que usem nativamente essas escritas.
Do lado das empresas, estas viram na democratização das ferramentas de produção de fontes digitais um caminho para ter fontes proprietárias, que atendam suas necessidades específicas, tornem-nas menos dependentes de licenciamento de grandes publishers e tragam mais um ativo importante para o valor de suas marcas. Esse movimento tem intensificado-se nos últimos anos e nada indica que vá parar, mesmo que algumas dessas fontes proprietárias se pareçam demais umas com as outras, ou sigam um certo estilo demasiadamente explorado. O custo de produção de uma tipografia própria teve uma queda significativa sem que isso implicasse em perda de qualidade frente a outras fontes para uso institucional, justificando esse investimento.
Mesmo que o custo de produção de uma fonte proprietária ainda não compense, novos modelos de uso e licenciamento de fontes de varejo permitem que mais concorrentes existam nesse mercado, ajudem a conter certos monopólios e tragam opções mais convenientes em longo prazo. A suposta economia trazida pelo uso de famílias tipográficas gratuitas torna-se um problema quando essa gratuidade é apenas o uso não-licenciado de fontes comuns, ou corresponde ao uso de fontes gratuitas distribuídas de forma independente, que quizaz serão atualizadas para atender necessidades específicas ou abordar atualizações vindouras de tecnologia. Além disso, existe a depreciação pelo aspecto genérico que o uso de uma fonte gratuita confere a uma identidade visual ou outros produtos de design gráfico.
Existem também tecnologias promissoras que ainda estão no começo, mas já vemos alguns usos aqui e ali. As fontes variáveis, que já mencionei algumas vezes, representam uma grande mudança na distribuição e uso de fontes em superfícies responsivas e meios que dependem de fontes com maior flexibilidade para aplicação. Além das fontes variáveis, existem as color fonts, que carregam em si as definições de aplicação de cor em uma ou mais camadas, dispensando do usuário a necessidade de criar paletas cromáticas e alguns efeitos de cor. Parece estranho, mas se você usa Windows, vê várias vezes uma color font em ação toda vez que utiliza um emoji.
Existem também no horizonte formatos para fontes que carregam em si suas próprias animações e que precisam de especificações mais amplas e precisas para que novos designers sejam capazes de produzi-las no futuro. Existem incontáveis finalidades para estas ramificações das fontes digitais que surgirão nos próximos anos, assim como existirão formas mais fáceis e baratas de fazer o que já é feito atualmente.
Todos esses motivos me fazem ser otimista com a tipografia enquanto indústria, para que o mundo tenha novas roupas para vestir seus textos, e pessoas queridas desse ramo tenham seu espaço reconhecido. Cada uma das milhares de fontes produzidas ao longo da história têm seu valor e importância, algumas mais do que outras. Só que, num mundo em que até letras surgem e desaparecem, é impensável que uma fonte, ou uma pequena coleção delas, resolverá todos os problemas de comunicação textual. Pensar que existem “fontes demais” no mundo é, de certa forma, pensar que talvez existam pessoas demais no mundo.
(Se bem que… não, vamos acabar por aqui, com a energia lá em cima. =D)
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Recomendações:
🎧 Podcast: Brandcast, com Guilherme Sebastiany e Diego Maldonado discutindo sobre o processo de criação de letras para fontes e para logotipos.
🎥 Vídeo: A Nova Voz Tipográfica do Canal Brasil, uma live com os estúdios Tátil e Plau sobre a produção da nova identidade visual e tipografia do Canal Brasil.
🔗 Link: Contraforma, a newsletter da designer de tipos Flávia Zimbardi, para quem quer mais tipografia no seu e-mail.
🇧🇷 Fonte brazuca: Milico Sans, Marck Al.
Escrito em 98702