Tipo Aquilo #33 – INSERT COIN AND PRESS START
Se você é velho o suficiente para ter jogado um Atari (ou algum genérico brasileiro, como eu e meu querido Dactar), certamente você se lembra do sentimento que tinha ao imaginar todos aqueles objetos na tela que pareciam carros, pessoas, árvores, aviões, tanques de guerra, insetos, alienígenas ou outras coisas, mesmo que tudo isso fosse apenas amontoados de pixels.
Só que aqueles pixels não eram pixels! Eram apenas um intervalo mínimo de tempo em que o canhão de elétrons de uma TV de raios catódicos poderia receber uma instrução nova de cor. Jogos como Pitfall, River Raid, Enduro, Pac-Man e Space Invaders não tinham conceitos como sprites, mas sim um monte de instruções matemáticas que o Atari 2600 processava e transformava em como o canhão de elétrons da sua TV devia funcionar. Esse foi meu TED Talk, muito obrigado e tenham uma boa noite.
(pausa para você absorver essa informação nova e completamente irrelevante para sua vida, enquanto movemos para outro assunto)
Algo que me deixa fascinado nas histórias dos nascimentos de tecnologias que hoje são tão comuns no dia-a-dia, especialmente sobre computadores e eletrônica em geral, é como essas tecnologias nasciam muito limitadas e aproveitando alguma brecha existente. O video-game, por exemplo, não nasceu porque alguém imaginou que pessoas adorariam colocar uma caixa preta na sala, ligar na TV e gastar tempo perdendo no multiplayer para um moleque de 8 anos na Coreia do Sul, mas sim porque alguns estudantes aproveitavam o tempo ocioso de computadores comerciais e militares para desenvolver importantes projetos de inteligência artificial interativa. Esse era o papinho necessário para que os técnicos que faziam um computador jogar jogo da velha e Spacewar! não fossem demitidos.
Mesmo vivendo de brechas, a cultura dos video-games se estabeleceu e criou uma indústria bilionária nos anos 70. Milhares de jogos foram produzidos com a promessa de que toda criança teria tempo livre e moedas para gastar nos arcades. Ainda levaria mais um tempo até os video-games domésticos, bem menos capazes que as máquinas dos fliperamas da época, serem comercialmente viáveis. Mesmo nos arcades, cada jogo continha o mínimo do mínimo do mínimo possível para funcionar; mesmo assim, uma tipografia muito peculiar tornou-se muito comum entre vários jogos e virou um cliché desse contexto histórico.
Reportagens da época começavam a tratar os video-games como uma tecnologia revolucionária que permitia simular corridas, batalhas, aventuras em universos inimagináveis. Exatamente por isso que nossa história começa no jogo mais tedioso possível, o Quiz Show, lançado em 1976 pela Kee Games (subsidiária da Atari), que simulava um programa de TV de perguntas e respostas sobre conhecimentos gerais. Apesar dessa premissa broxante, o jogo trazia letras e números criados para a interface do jogo que são o que a gente chama comumente de “fonte do Atari”, pois eram letras criadas num grid de 8x8 que eram simples o suficiente para qualquer máquina processar.
Era uma prática comum em outros jogos terem apenas os caracteres necessários para o jogo; por exemplo: um jogo de tênis tem de 2 a 3 sets, com pontuações de 15, 30, 40 e 60. Para mostrar essa pontuação aos jogadores, o jogo Tennis não precisava dos números 7, 8 e 9, e por isso eles não eram guardados na memória. Quaisquer letras além das necessárias para a mensagem “INSERT COIN” também não eram feitas. Só que Quiz Show precisava ter na memória os desenhos de todas as letras porque sua máquina tinha uma fita cassete com aproximadamente quatro mil perguntas de categorias diversas. O jogo foi lançado em abril de 1976, mas nunca foi tão famoso quanto outros jogos da Kee Games, como Cannonball e Sprint 2. Este último, pelo sucesso comercial, passou a nomear o set de letras e números criados (provavelmente) pelo programador Lyle Rains.
As letras de Quiz Show deixaram de ser exclusividade da Atari e apareceram, com ligeiras alterações, em jogos de outras fabricantes, como Gremlin, Konami e Namco. Esta última é uma grande responsável pela fama dessas letras, utilizando-as para tornar os jogos produzidos no Japão consumíveis pelo público americano. Ela era responsável por grande parte dos arcades que ocupavam os fliperamas americanos, com jogos de diversos estilos, só que cada jogo era produzido por equipes muito enxutas. Era comum que apenas um ou dois programadores produzissem interface, elementos gráficos, jogabilidade, história, e também letras e mensagens. Isso era um problema simples enquanto jogos não precisavam de uma ou outra mensagem, mas virou um problema conforme os jogos ficaram maiores, gerando até um dos memes mais antigos da Internet, o All your base are belong to us!!! Ter uma fonte confiável para traduções a toque de caixa era primordial, e a fonte do Quiz Show mostrou-se eficaz para essa tarefa.
Comparados aos video-games domésticos, como o Atari 2600, as máquinas de arcade eram supercomputadores extremamente capazes em termos de gráficos e memória. Mesmo assim, cada jogo tinha o mínimo possível para funcionar. Os famosos easter-eggs surgiram apenas em 1980, no clássico Adventure. Era difícil usar números e palavras no jogo porque cada caractere ocupava espaço no código. Por isso, letras minúsculas viraram um luxo que só apareceram pela primeira vez no Roc’n Rope, da Konami, de 1983. Quando eu digo “apareceram”, não quer dizer que a tecnologia para texto no video-game tinha melhorado; ao contrário, também tinham que caber como pudessem no grid de 8x8, espremendo traços ascendentes e descendentes. Ah sim, todas as letras eram monoespaçadas, e esse grid de 8x8 precisava conter tanto as letras quanto os espaços entre elas.
A turma mais íntima da tipografia já sacou que muita coisa desse texto veio do “Arcade Game Typography”, o livro do type designer japonês Toshi Omagari, que catalogou milhares de letras de jogos de arcade de acordo com os desenhos das letras e o uso de cores dentro dos grids de letras. Omagari limitou o escopo do livro a arcades, mas a fonte originada no Quiz Show também apareceu no Atari 2600 e, futuramente, nos Famicom’s. O primeiro console da Nintendo já tinha um hardware mais avançado, com um componente próprio para processar mapas de pixels (agora sim eles existem) e transforma-los em sinal analógico para as TV’s. Jogos clássicos como Super Mario Bros., The Legend of Zelda e Metroid, também usavam a Sprint_2 da Atari ligeiramente modificada.
Lyle é creditado como o provável criador das letras do Quiz Show, que tornaram-se sinônimo do universo clássico dos video-games. É importante observar que elas ainda têm um pé nas regras clássicas da caligrafia e tipografia: ela tem um bom contraste entre traços grossos (de 2 unidades) e finos (de 1 unidade), e o uso desse contraste em letras como o “K” e o “R” mostram um leve alinhamento dessas letras com outras fontes clássicas. Repare também nos números “0” e “8”, em que há uma representação de um certo contraste em traços inclinados. Conforme os video-games tornaram-se mais potentes, essas letras deixaram de estar nos jogos, mas viraram um clichè para outras mídias tratarem do universo de jogos eletrônicos em geral.
Rains não é tão lembrado como um ícone de cultura pop. Na história dos video-games, ele é mais lembrado como co-criador de jogos clássicos como Asteroids e Gauntlet, que vez em quando figuram nas listas dos melhores jogos do velho Atari 2600. Também não existem muitas histórias sobre o processo de Lyle para o desenho de suas letras. O universo dos arcades, como o livro de Toshi mostra, teve centenas de letras diferentes, com variações de formas, cores e efeitos; inclusive, pixel fonts são uma boa porta de entrada para quem quer começar a desenhar letras. Mesmo que uma fonte se sobressaia e seja ícone de uma subcultura, existem infinitas possibilidades em poucos pixels.
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Recomendações:
🎧 Podcast: Pouco Pixel #3, com Adriano Brandão e Danilo Silvestre conversando sobre a história dos fliperamas.
🎥 Vídeo: The 8-bit arcade font, deconstructed, um vídeo original do Vox com um breve resumo e entrevista com o autor Toshi Omagari sobre a história da fonte do Quiz Show.
🔗 Link: Fontstruct, uma ferramenta para a criação de pixel fonts exportáveis e prontas para uso simples.
🇧🇷 Fonte brazuca: Motus, de Thais Lima.
Escrito em 98535.21