Tipo Aquilo #30 – As escritas da ficção
A cena de créditos de Pantera Negra enche os olhos de quem gosta de tipografia, e fecha muito bem um filme tão importante para a nossa sociedade presente. Ao som de “All the Stars” (SZA e Kendrick Lamar), elementos do filme complementam os textos dispostos inicialmente na escrita de Wakanda, mas logo transformados numa fonte geométrica com formas pouco usuais, como se as letras fossem decifradas para algo que parece, ao mesmo tempo, ancestral e futurista.
Na produção de filmes, séries e jogos de fantasia e ficção científica, é comum a criação de línguas e escritas próprias para a ambientação da história, mais ou menos elaboradas de acordo com a necessidade e o orçamento. Elas ajudam o espectador a imergir num universo estranho ao nosso, dão pistas sobre a cultura e modo de vida dos personagens, e quando analisadas caso a caso, deixam evidente uma relação intrínseca entre escrita e pensamento. Essa relação aparece nos casos mais rasos e mais profundos de escritas fictícias, entre os que apenas mimetizam outros caracteres num mapeamento quase direto com o alfabeto nativo de quem os projetou, e os que encaram o desafio de especular sobre a história de um povo que alcançou a habilidade de escrever e o contexto que este povo escritor tinha para tal.
A escrita de Wakanda, produzida para o filme, é baseada em várias escritas antigas utilizadas no continente africano, como o Ge’ez, Tifinagh, Vai, Bamun e Nsibidi, mas cada caracter possui um correspondente direto com o alfabeto latino. Outras escritas de produções da Marvel, como as utilizadas pelas raças Skrull e Kree (em Capitã Marvel), também têm essa relação direta com o alfabeto latino. Não é interesse da Marvel criar um universo linguístico tão rico quanto a rede de relacionamentos de seus heróis e vilões.
Em outras propriedades intelectuais, como Star Trek, há níveis diferentes de complexidade e correlação das escritas produzidas para as séries e alfabetos da vida real. Há, por exemplo, a escrita romulana, que basicamente replica o mapeamento de caracteres do alfabeto latino, ou a escrita klingon, que possui caracteres próprios para o uso com a língua homônima mas também guarda similaridade com a estrutura da nossa escrita. Por sua vez, as letras vulcanas têm pouco paralelo com as nossas, e até o sentido de escrita, de cima para baixo, mostra um esforço em distanciar-se do alfabeto latino como influência.
Star Wars também tem suas escritas fictícias próprias, como o Aurebesh, o alfabeto comum da galáxia que tem correlação direta com o alfabeto latino até no próprio nome (“aurek” e “besh”, literalmente “a” e “b”) mais alguns caracteres. A franquia também tem outros sistemas de escrita, como o Mandaloriano, o Futhork e o Geonosiano. No universo de Star Wars, há também o Alto Galático, uma escrita que o cânone do universo descreve-a como uma escrita usada apenas por intelectuais, mas que na verdade é o nosso alfabeto latino.
As escritas de Star Wars também apresentam um aspecto comum das escritas fictícias: quanto mais próximas de um contexto de tecnologia desenvolvida, mais retas e padronizadas são as letras. Isso funciona como uma forma de indicar um pensamento tipográfico presente no universo. Isso é similar em Star Trek, a exemplo da escrita klingon, que tem formas que parecem feitas com instrumentos rudimentares, num esforço da série de tratar os klingons como “tribais” e menos capazes intelectualmente, ao passo em que eles já dispõem de tecnologia comparável com a dos demais povos que compõem a Federação dos Planetas Unidos.
Saindo da ficção científica, o exemplo mais recorrente em escritas ficcionais é o da Terra Média, de O Senhor dos Anéis, O Hobbit e outros livros. Tolkien era um linguista exímio, que não se furtou em criar várias línguas e escritas para o seu universo. A escrita mais comum é o tengwar, um abugida (forma de escrita em que vogais são componentes anexos aos consoantes) cujas formas assemelham-se à nossa caligrafia uncial, mas o uso assemelha-se a escritas do sudeste asiático. Há também uma forma “itálica” do tengwar, comum entre elfos, cujo exemplo mais notável é a inscrição forjada no Um Anel. Tolkien também desenvolveu outras escritas para seu universo, como o Sarati e o Cirth, uma adaptação do sistema de runas.
O universo de fantasia também tem outros exemplos de escritas fictícias, como o Dothraki de Guerra dos Tronos e as letras de jogos como das franquias Elder Scrolls e The Legend of Zelda. No entanto, as letras criadas por Tolkien vão além de apenas mascarar alfabetos reais; o tengwar em especial tem uma relação com a história, as línguas e a cultura dos povos da Terra Média, o que acontece com os nossos alfabetos ao longo da história. A forma com que lemos e escrevemos tem relação com a forma com que interpretamos o mundo e os meios que dispomos para registra-lo.
Dessa forma, se caírmos numa análise muito profunda (talvez meio nerd, desculpa qualquer coisa), é estranho pensar que, numa obra de fantasia ou ficção científica com ambientação distante da nossa, um povo tenha evoluído e, com o passar dos anos, a escrita deles coincidentemente se parece com a nossa. Claro que o total de pessoas que se importam com isso cabem num apartamento de 10m² em Higienópolis; pessoalmente, prefiro que continue assim. Isso também vale para o sistema numérico decimal, que usamos corriqueiramente, mas não é uma lei universal; é sim um modo que utilizamos para fazer cálculos e entender certos aspectos da natureza; o dispositivo que você está usando agora faz a mesma coisa com apenas dois números, mas filmes e séries utilizam uma mímica dos números de 0 a 9.
Um contraponto a isso é o filme A Chegada, em que o elemento principal do filme é uma escrita ideográfica desenvolvida pelo instituto Wolfram para mostrar textualmente o conceito de não-linearidade temporal. O resultado é uma série de formas circulares com manchas radiais distintas, em que cada forma representa uma ideia diferente. Essas formas representam o modo de pensar da raça de heptapods sobre o universo ao redor, em que o tempo, para eles, não tem início ou fim, e o meio de escrita é o fluido negro expelido por seus membros.
Todo esse assunto de escritas fictícias puxa um assunto que eu quero abordar em breve, o de escritas historicamente recentes criadas para idiomas reais. Admito que não é justo cobrar que todo produto de entretenimento tenha uma plena compreensão da evolução e modo de uso dos sistemas de escrita na cenografia. A Chegada é um grande caso à parte porque a linguagem é motor da narrativa; em outros casos, a função principal dessas escritas, que é dar certa credibilidade e facilitar nossa imersão, já é bem cumprida. Quando a gente tem a oportunidade de analisar essas escritas e vê-las tão estruturalmente parecidas com os nossos alfabetos, após a frustração, vem a constatação do elo quase inconsciente entre escrever e pensar, e como é difícil transcender isso.
Essa edição é uma homenagem tardia, porém não-esquecida, a Chadwick Boseman, por toda a inspiração e representatividade que ele ajudou a levar aos cinemas e às vidas de milhares de pessoas. =)
Recomendações:
🎧 Podcast: Entreletras #10, com Bianca Benedicto conversando sobre sua pesquisa de mestrado acerca de escrita e caligrafia.
🎥 Vídeo: How to Create a Writing System, um guia em inglês para os sistemas de escrita existentes e a construção de escritas fictícias.
🔗 Link: Omniglot, um extenso repositório de exemplos de escritas históricas e fictícias.
🇧🇷 Fonte brazuca: Amazônia, de Sofia Mohr e Sebastián Águila.
Escrito em 98387.36