Tipo Aquilo #28 – Eram os hieróglifos emojis?
Resposta curta: não, não eram. Minha intenção não é te fazer ler um texto apenas por uma polêmica vazia, então daqui pra frente só aprofundaremos essa discussão. ;)
Vez ou outra, surge aquele meme que, resumidamente, diz: “4.000 anos depois e nós voltamos a nos comunicar por imagens”. Quando se olha para fotos de textos sagrados egípcios escritos em hieróglifos, é aceitável associa-los a emojis à primeira vista. No entanto, esse é um assunto que me incomoda porque, embora abra um caminho legal para discussão sobre comunicação gráfica e textual ao longo da história, geralmente é desperdiçado com preconceitos. Alguns bobos, outros bem sérios.
Antes de chegar nestes preconceitos, acho legal explicar os atores envolvidos nisso. Começando pelo mais antigo: os hieróglifos, usados entre 3.100 a.C. e 394 d.C. e decifrados para os tempos atuais apenas no séc. XIX. Os hieróglifos mantiveram um sistema figurativo de escrita, em que signos simples eram representados de forma pictórica, e ideias mais abstratas demandavam combinações específicas desses pictogramas. O sistema de hieróglifos chegou a conter mais de mil caracteres, e a maioria delas dispunha de uma representação fonética própria.
Os hieróglifos, para a civilização egípcia, foram um presente de Seshat e Thoth para que pudessem gravar seus ritos, costumes, conquistas e glórias para a posteridade. Embora apenas uma pequena parcela da população soubesse escrever, alguns caracteres básicos eram reconhecíveis pela maioria da população. Os escribas desenvolveram vários processos de escrita e acabamento para os hieróglifos, como gravações em alto e baixo relevo, uso de cores e composições com diferentes sentidos de leitura. Como a escrita hieroglífica dispunha de caracteres com desenhos complexos, surgiram escritas com formas mais abstratas, porém mais rápidas de escrever, como o hierático e o demótico.
Uma forma interessante que os egípicios dispunham para escrever palavras complexas era o rébus, uma combinação de hieróglifos com fonemas básicos dispostos em sequência para compor uma palavra inteira. Estes rébus eram usados com certa frequência, e assemelham-se à forma com que, atualmente, encapsulamos sequências de letras entre espaços para formar palavras inteiras. O cartaz de Paul Rand de 1981 para a IBM funciona de forma semelhante e ajuda a explicar o conceito: um “olho” (eye) no lugar do I, e uma abelha (bee) representando o B.
Saltando no tempo, vamos aos emojis. Pra falar deles, primeiro vamos aos emoticons, pequenas composições de letras e símbolos que representam expressões faciais. No começo das primeiras redes de computadores — nem estou falando de Internet ainda —, a comunicação era toda baseada em texto. Até o que não parecia texto era texto, e a comunicação era limitada a letras, números e sinais de pontuação. Em alguns grupos de mensagens, criou-se o costume de indicar mensagens sérias com uma cara triste :-( e posts de humor com um sorriso. :-)
Conforme as redes e os computadores conectados ficaram melhores — agora sim, estou falando da Internet —, os usuários tinham sets mais amplos de caracteres à disposição, o que permitia criar mais expressões faciais, ou para outras coisas. Algumas fontes que dispõem de caracteres para vários sistemas de escrita permitiam misturar, por exemplo, kanjis, letras latinas e caracteres especiais pra criar expressões impossíveis anteriormente. Tem alguns que a pessoa precisa de um tempo pra entender e se acostumar. Acontece. ¯\_(ツ)_/¯
Só que, até agora, não estamos falando de nada prático para o usuário comum no dia-a-dia. Eles só começaram a fazer sentido a partir de 2009, quando passaram a ter seu próprio espaço no Unicode. Resumidamente, é como se cada emoji fosse um caracter, pudesse ter um teclado próprio como temos atualmente no iOS e no Android, e funcionassem da mesma forma entre sistemas operacionais diferentes e aplicativos diferentes. Isso normatizou o que vários programas faziam de forma isolada, como o Skype e o finado MSN Messenger. Além dos espaços no Unicode para os emojis, a tecnologia de color fonts permite aos designers de tipos adicionarem seus próprios emojis a fontes comuns, ou criar fontes específicas para emoji, como o Twitter.
Atualmente, são enviados mais de 6 bilhões de emojis por dia, e a popularização dos emojis permitiu que 😂 fosse o verbete do ano do Oxford Dictionaries em 2015. Também deu início a vários textos e reportagens sobre como eles se assemelham com os hieróglifos egípcios e, teoricamente, indicam um retorno catastrófico da nossa civilização às trevas da escrita pictórica. Vários desses textos cometem o mesmo erro de achar que a escrita egípcia era só um monte de aves e formas simples. Pelo contrário: ela dava amplo suporte a uma linguagem rica com gramática sofisticada para o seu tempo.
O ponto central, que me ajuda a tirar qualquer juízo de valor sobre um ou outro, é que comparar emojis com hieróglifos funciona como comparar peixes e bicicletas, porque são coisas essencialmente diferentes. Uma sequência de emojis sozinha ainda não expressa ideias muito complexas, não tem uma forma própria de pronunciação, e não se propõe a tal. Hoje ele cumpre um papel semelhante ao que fazem os GIF’s animados desde o início da década, o de atalho emocional. É mais fácil descrever um estado de alegria, tristeza, excitação, indiferença ou quaisquer sentimentos com um GIF de qualquer coisa da cultura pop, uma figurinha de WhatsApp ou um emoji apropriado, do que textualmente.
Essa facilidade também não indica regressão na nossa habilidade comunicativa. Tentativas de criar uma linguagem universal pictórica existem há bastante tempo, como o Isotype e o LoCoS. Elementos desses dois sistemas pictográficos são muito utilizados por designers para fazer sistemas de wayfinding, peças de design de informação e embalagens, por exemplo. Do ponto de vista do design de interfaces digitais, o uso de pictogramas é tão importante para a construção de aplicativos que Google e Apple se dão ao trabalho de ter seus próprios sistemas de pictogramas. Não esqueçamos também que os dingbats também fazem sua função de comunicação pictográfica dentro da tipografia desde antes da tipografia digital.
As comparações de hieróglifos com emojis também servem para alguns propósitos vis; do mais inocente, como sequestrar um clique prometendo uma polêmica vazia, ao mais pesado, um orientalismo velado, um preconceito contra outras culturas além da greco-romana. Esse sentimento ruim de diminuir a importância de emojis e a escrita egípcia tem sido propagado por simples puristas da escrita textual, acadêmicos que ainda sustentam uma superioridade intelectual da cultura helênica, e também por movimentos identitários (leia-se xenófobos) pan-europeus. No sentido contrário, o Unicode tem se mostrado mais progressista ao abordar emojis, sendo mais inclusivo para raças e gêneros diferentes, e facilitando a comunicação e expressão pessoal de mais de 90% da população conectada.
No fundo, eu quero acreditar que essas comparações podem servir para as pessoas conhecerem mais sobre a cultura egípcia, como foi uma exposição no Museu de Israel, em Jerusalém, usando emojis como ponte para a dádiva do Nilo. O ser humano, ao longo dos tempos, usou sua capacidade de inventar ficções para criar histórias, narrar suas conquistas e perpetuar seu conhecimento. Tem usado todas as artes para isso, de pinturas rupestres a esculturas, músicas, textos, interpretações corporais, e não há de acontecer que uma forma de comunicação suprima as demais. 😊🖋🍺💛
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Recomendações:
🎧 Podcast: Emojis: The :-) That Changed Everything, do podcast Forever Ago apresentado pelo Brains On!.
🎥 Vídeo: TV Escola: A Revolução dos Alfabetos, um vídeo sobre a origem e evolução dos alfabetos.
🔗 Link: The Eloquent Peasant, um dos textos que usei como referência para esta edição, que traz uma visão egiptóloga sobre o tema.
🇧🇷 Fonte brazuca: Quicko Typeface, de Ana Laydner e Flora de Carvalho.
Escrito em 98160.27