Tipo Aquilo #27 – Políticas do Design
A palavra “política” não deve ser usada de forma leviana. No nosso cenário midiático, cada vez mais polarizado, muitas pessoas dizem ter liberdade para serem apolíticas ou para ficarem de fora da política, como se existisse uma terra mágica para onde fosse possível fugir, sem sofrer o peso da opressão e da violência. Seria ótimo, mas infelizmente não existe um lugar assim.
Essa introdução faz parte da edição brasileira de “Políticas do Design”, de Ruben Pater, lançada pela Editora Ubu. A newsletter de hoje é uma espécie de resenha do livro, como pretexto pra falar aqui de toda a agitação social vivida no mundo, e alguns desdobramentos que acertaram em cheio até o mundinho da tipografia. Por ora, vamos ao livro.
A julgar pelo título, o leitor pode pensar que trata-se de um manifesto partidário de direita ou esquerda, disfarçado de guia de design. Ele não é. Também não quer dizer que ele seja um livro isentão ou simpático ao dois-ladismo. As políticas que aborda são as práticas e habilidades que o designer deve ter para projetar num mundo realmente global, atentando-se ao que ”global” significa de fato: uma grande civilização com várias religiões, idiomas, escritas, histórias, etnias e biomas vivendo num geoide. Por isso, ele aborda vários tópicos organizados entre os fundamentos da comunicação visual, e como esses tópicos funcionam em culturas diferentes.
Cada capítulo é breve — saltando entre erros, acertos e curiosidades de produção gráfica, branding e design digital — e o livro conta com várias adições e atualizações desde a primeira edição impressa. Com isso, ele consegue oferecer uma leitura rápida e assertiva em pouco mais de 180 páginas, e cada capítulo traz uma nova provocação sobre o que significa fazer design para um mundo global e menos centrado em Europa e América do Norte. É um primeiro passo interessante para uma conversa que estará mais frequente nos próximos tempos, a de descolonização do design.
Pense que o design, ao longo da história, cercou-se de um pensamento eurocêntrico que determina o que é design e quem pode dizer que faz design. O resultado é que, como vários campos de conhecimento, a história do design é um grande rolê de homens brancos. É difícil encontrar referências negras de design, por exemplo, e também é difícil que sejam entendidas como design outras atividades de produção e expressão visual em série feitas fora das capitais econômicas. Deveria ser mais fácil hoje, mas estamos em 2020 e ainda falamos de gente que quer estipular como e quando quer ser mais tolerante a diversidade.
Percepções baseadas em estereótipos de outras culturas também são maus exemplos na tipografia. Um exemplo é a Neuland, fonte criada em 1923 pelo alemão Rudolf Koch como uma versão moderna de escrita blackletter. Essa fonte tornou-se uma escolha comum para embalagens de cigarros e letreiros de circos, dando à fonte uma conotação “exótica” e “selvagem” o suficiente para que uma releitura de escrita gótica alemã pareça uma tipografia étnica africana. Enquanto a comunidade afro-americana produzia revistas e capaz de jazz usando fontes convencionais, os brancos ainda se divertiam com seu pastiche de arte africana, e reforçavam estereótipos com tipografias étnicas também com chineses e árabes.
Quem se envolve com ativismo no design muitas vezes trabalha em estúdios comerciais durante o dia e cria memes e imagens ativistas à noite. Não se trata de um caso de esquizofrenia, como se o designer se dividisse entre uma personalidade política e outra apolítica, mas sim de uma tática de sobrevivência para manter a saúde física e mental. Não dá para separar o design da vida pessoal, da mesma maneira como não dá para separar o design da política.
Algo que o livro aborda em vários exemplos, mas muito designer ainda sai da academia sem esse conhecimento, é que mesmo as menores decisões tomadas num processo de design são políticas, porque as relações humanas são essencialmente políticas. Escolhas de cores, fontes, redação, imagens, materiais e meios, são tomadas com base em vieses bem definidos e alinhados aos valores de pessoas e/ou organizações que visam influenciar e persuadir outras pessoas. Isso é política tanto quanto são as decisões de políticos que interferem no design. É discurso feito em imagem. Num mundo em que decisões políticas mudam até a forma de escrever de um país inteiro, dizer que política e design são dois entes separados e imiscíveis é ignorar o poder dessa retórica.
E as políticas do design não se resumem a tudo do estúdio pra fora; também dizem respeito a como o design é feito do estúdio pra dentro, de como as empresas criativas têm reagido (mal) às iniciativas de promoção de diversidade e denúncias de assédio no trabalho, e de como funciona a empatia necessária para trazer conhecimento de fora e ser mais inclusivo. Estúdios de design, agências de publicidade e associações de designers têm processos que refletem as relações de poder do lado de fora; por isso, esses lugares não podem admitir que estas relações de poder naturalizem quaisquer formas de discriminação.
Embora eu tenha tocado em outros assuntos e abordado pautas recentes, eu creio que não deixei de falar do livro em momento algum. O livro não se preocupa com o quanto ele expõe verdades tomadas como convenções do design, e com quanto o leitor está disposto a abrir a mente antes, durante e após a leitura. Não é um livro sobre ativismo no design, mas é sobre as consequências de um design preguiçoso, voltado a reafirmar valores antigos, e que diz que não se importa com política.
Agradecimentos a Debora Sales, Leon Sampaio e Renata Takatu, pela colaboração e revisão do texto. =)
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Recomendações:
🎧 Podcast: Usabilidoido: Design Crítico: origem e descolonização brasileira, gravação realizada na disciplina Design e Cultura e Teoria do Design 3 da UTFPR.
🎥 Vídeo: UBUTV – Políticas do design, uma resenha feita por Tereza Bettinardi sobre o livro.
🔗 Link: The Politics of Design, site mantido pelo autor Ruben Pater como complemento ao livro.
🇧🇷 Fonte brazuca: Elizeth, de Daniel Sabino.
Escrito em 98091.18
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