Tipo Aquilo #25 — Poesia visual brasileira
Na edição de Natal do ano passado, eu fiz uma breve defesa de um tipo específico de meme como fagulha para falar de tipografia com não-designers. O tal do SASALELE, que virou objeto de amor, ódio e sobremesa de uma das atividades que designers mais gostam: falar mal de outros designers. Pois hoje, vou me dedicar apenas a esfregar na cara do fiscal de leitura da esquerda pra direita o quanto ele está errado. =D
A arte e a tecnologia têm uma relação muito íntima; inclusive, o estudo sério da história da arte só faz sentido quando, ao invés de apenas memorizar nomes de artistas e datas de obra, analisa-se as transformações sociais e as inovações tecnológicas de cada época. O artista, por sua vez, busca estudar os meios de expressão formal disponíveis, entender seus funcionamentos e utilizar alguma para traduzir uma fração de sua visão de mundo em uma obra.
Essa definição talvez funcionasse bem até Duchamp e qualquer coisa que você pense sobre “A fonte”. O urinol na galeria e outras obras do movimento dadaísta foram produtos de uma contínua desconstrução das artes, pondo em prova aspectos básicos da forma e da linguagem. Na filosofia, o trabalho de Ludwig Wittgenstein em estabelecer a linguagem como “construtora” da realidade, por exemplo, foi importante para a virada linguística.
Em resumo, a linguagem e a própria forma da escrita tornaram-se novos caminhos para a criação artística. Enquanto os poetas dadaístas buscavam a ausência de nexo para a criação, os cubistas encontraram na escrita e na tipografia novos caminhos para uma expressão artística baseada numa decomposição da linguagem escrita e, em seguida, numa recomposição que explorasse outros sentidos. A poesia visual introduzida por Guillaume Apollinaire é o primeiro expoente do cubismo na literatura, com seus “caligramas” e composições tipográficas excêntricas.
No Brasil, podemos traçar origens da poesia visual até Gregório de Matos, que já experimentava novos caminhos desde o século XVII. Os modernistas da semana de 1922 semearam mais uma vez a experimentação gráfica com tipos móveis no meio artístico nacional, especialmente com a revista Klaxon. Nas décadas de 1930 e 1940, Vicente do Rego Monteiro foi um exímio experimentalista de tipografia e produtor de caligramas, ajudando a inovar a produção literária nacional, assim como Wlademir Dias-Pino. Calcando finalmente o caminho, na década de 1950, artistas e designers d’O Gráfico Amador, como Aloísio Magalhães e Gastão de Holanda, tiveram grande importância para o design gráfico brasileiro.
A Exposição Nacional de Arte Concreta de dezembro de 1956 concretiza o concretismo (rá!) na história da arte brasileira. A partir dela, a poesia concreta ganha movimento próprio, encabeçado por Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Crescem o número de artistas importantes relacionados à poesia concreta, como Ferreira Gullar, Neide Sá, Paulo Bruscky, Pedro Xisto, Edgard Braga, entre outros; assim como surgem dissidências, como o neoconcretismo, o poema/processo, a poesia-práxis e a arte correio.
Cada um a seu modo, os movimentos seguintes exploraram diversos processos gráficos, como tipografia, carimbo, gravura, máquina de escrever, estendendo-se até a experimentação com objetos comuns. Ainda na década de 1970, o computador torna-se um novo meio de experimentação gráfica, mesmo com a reserva de mercado imposta pela ditadura militar. Até o vídeo e o fax são utilizados como instrumentos para a poesia visual. Todo esse arcabouço visual produzido nos anos de chumbo encontra nos anos 1990 uma geração de designers ávidos para produzir peças que ecoam uma rebeldia similar à de nomes como David Carson, Paula Scher e Stefan Sagmeister.
Até hoje a poesia visual é prática e referência de artistas gráficos e designers brasileiros até hoje. É comum que disciplinas de tipografia e análise gráfica recorram à poesia visual como exercício para tirar do futuro profissional criativo a necessidade de respeitar leiturabilidade, entre outras convenções da escrita, e dar coragem para a expressão de um sentimento íntimo ou coletivo. Inclusive, quando surge o tal do SASALELE em grupos de discussão, o que eu sinto sobre quem fez uma composição que não ficou tão boa, por pressão do mercado ou falta de referência — é o mesmo sobre quem apedreja com crítica cínica o trabalho honesto dos outros: falta mais coragem*.
* Lembrete para eu também lembrar disso mais vezes.
Agradecimentos à Monique Cardoso, que me presenteou com o catálogo da mostra História da Poesia Visual Brasileira do Sesc São Paulo, que utilizei junto com o Tupigrafia 13 como referência para esta edição. (=
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Recomendações:
🎧 Podcast: AntiCast #153, com Ivan Mizanzuk, Ricardo Cunha Lima, Almir Mirabeau e Guilherme Cunha Lima conversando sobre O Gráfico Amador.
🎥 Vídeo: Roda Viva com Décio Pignatari, do acervo de entrevistas clássicas da TV Cultura, exibido em em 13 de novembro de 1989.
🔗 Link: O catálogo da mostra “História da Poesia Visual Brasileira”, a versão online do livreto produzido para a mostra exibida no Sesc Bom Retiro em 2019.
🇧🇷 Fonte brazuca: Sunbeat, do estúdo PintassilgoPrints.
Escrito em 98000.1