Reprint #1 – A taça de cristal, de Hele Carmona
A impressão deve ser invisível (?)
“A taça de cristal, ou a impressão deve ser invisível” é um texto fundamental para o design gráfico. Escrito pela tipógrafa Beatrice Warde como discurso para a Guilda dos Tipógrafos Britânicos no St. Bride Institute em 1930, o ensaio permanece até os dias atuais como leitura obrigatória nas faculdades. É uma forma fácil de mostrar aos alunos que as escolhas feitas acerca de fontes, entrelinhas, margens e diagramação, como um todo, influenciam na capacidade do leitor de apreender o conteúdo escrito, sendo este o objeto final da impressão, segundo Warde. Ela o faz de uma forma brilhante, comparando escolhas tipográficas com a fina arte de degustar vinho em uma taça à escolha, sendo o bom leitor aquele que, para tirar quaisquer distrações de sua degustação e honrar as qualidades da bebida e o próprio paladar, decide pela taça de cristal. Por isso, segundo o texto, a tipografia deve ser, tal qual a taça, invisível.
O universo de analogias usadas para explicar tipografia está anotado como um futuro tema, mas não é nisso que eu quero focar agora. A ideia de “tipografia invisível” de Warde assemelha-se ao pensamento do tipógrafo Robert Bringhurst, autor do Elementos do Estilo Tipográfico, de que “a tipografia deve honrar seu conteúdo”. Contudo, isso é só uma camada do ensaio, apenas um de vários temas que as palavras de Beatrice conectam, e a
trouxe na edição 37 do . Beatrice defende o sommelier como um modernista, alguém que preza pela boa tipografia no afã de capturar tudo que o autor busca expressar com suas palavras, cabendo ao tipógrafo a humildade necessária para criar uma janela transparente entre o leitor e o texto.O texto de Beatrice dá um rosto amigável ao pensamento neo-tradicionalista de Stanley Morison, chefe e parceiro de trabalho na Monotype, que alguns designers contemporâneos evidenciam e criticam o caráter de obediência e alienação impostos ao tipógrafo ante o texto impresso, produto final de seu trabalho. Como nada é (nem deve ser) imune a críticas, após quase noventa anos, “A taça de cristal” já foi revisitada sob diversas perspectivas. Quando colocamos na mesa, por exemplo, o pensamento de McLuhan de que “meio é a massagem mensagem”, é impossível a tipografia ser invisível. À medida em que a produção gráfica torna-se mais próxima do designer, a tipografia torna-se um meio de expressão em projetos autorais, um suporte adicional para a narrativa. Os dias atuais fazem com que as escolhas de fontes, diagramação, meio de suporte e outras configurações sejam feitas em função da história a ser contada, da qual o texto é apenas uma dimensão.
É possível ir além ao refletir sobre o “vinho” que nós bebemos. Há quem defenda que o importante mesmo é compartilhar a experiência de ter bebido o vinho; a transparência da taça nem seria tão importante assim. O importante é que esse pensamento é poderoso para entendermos a que se presta nosso trabalho como designers; passados mais de noventa anos, ainda falamos de vinhos e tipografia. Há também a importância da questão de gênero quando conhecemos a história de Beatrice, que precisou adotar o pseudônimo de Paul Beaujon para ser aceita numa indústria predominantemente masculina. Essas reflexões fazem o texto dela ser brilhante até hoje, e o texto da Hele, que homenageia “A taça de cristal”, é a dica de leitura do Reprint de hoje. ;)
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Nota do editor
Apenas duas notas rápidas. Primeiro: lembram que eu falei que, nesse ano, o Tipo Aquilo teria mais atrações além dos textos normais? Dessa vez, eu inauguro o Reprint, reservado para trazer de volta textos antigos do TA, porém revisados e atualizados; ou textos legais de outras pessoas, que vale a pena vocês lerem.
A segunda é que, se um dia, vocês me convidarem pra jantar, não me peçam pra escolher vinho. Eu estudo tipografia exatamente para não precisar entender de vinho. ;)