Vamos falar de fontes #6 – Civilité e Letra Brasileira
Usando a tecnologia para mimetizar a escrita
Civilité, de Robert Granjon
Seja qual for o ponto zero da tipografia que você adote — dos experimentos com tipos de cerâmica na China e na Coreia do séc. IX aos tipos gravados por Gutenberg entre 1450 e 1455 —, é evidente que a tecnologia foi criada para “automatizar” a escrita. Parecia algo inteligente fazer uma pessoa escrever uma letra apenas uma vez e, depois, copiar o registro dessa letra em dezenas ou até centenas de peças intercambiáveis. Apenas mais tarde a tipografia passou a ter uma “linguagem” própria, por assim dizer, que lança mão de letras que dificilmente seriam usadas no dia-a-dia até do calígrafo mais habilidoso.
Os tipos cortados por Gutenberg para a Bíblia de 42 linhas reproduzem a escrita blackletter textura da época. Contudo, a textura apresentava poucas oportunidades para o calígrafo mostrar alguma “virtuosidade” na escrita, algum traço mais expressivo para fins de adorno. A textura é um estilo razoavelmente iniciático de caligrafia, que privilegia a repetição, a escrita monotônica/monótona e o estabelecimento de um padrão gestual e rítmico facilmente transmissível para outros calígrafos. Isso não só tornou a atividade do calígrafo quase mecânica, como fez essa escrita ser facilmente convertida para uma linguagem de máquina.
A textura, no entanto, não era a única mão caligráfica existente dentro do universo blackletter; outros estilos, como a mão bastarda (do francês bâtarde), era comum entre escribas mais próximos do direito, sendo usada para redigir documentos com maior velocidade. A construção das letras era mais rápida, e os escribas lançavam mão de maneirismos, como abreviaturas e traços no final de linhas, que impossibilitavam fraudes em documentos oficiais e dão calafrios em paleógrafos até hoje.
A Civilité, do impressor e gravador de tipos francês Robert Granjon, foi criada em 1557 para reproduzir esse estilo, sendo uma das primeiras fontes da história que buscavam intencionalmente imitar um estilo de escrita cursiva. Os tipos feitos por Granjon mimetizavam os contrastes acentuados da pena quadrada, ligaduras, floreios e movimentos específicos com giros de pena, transpondo esses recursos para a tecnologia de tipos móveis com razoável sucesso comercial. Embora tivesse um grande apelo nacionalista francês, Granjon não conseguiu fazer seus tipos bastardos rivalizarem com o estilo itálico.
A Civilité é um dos modelos históricos resgatados e disponibilizados em formato digital pela Hoefler & Co. Embora não seja difícil discernir um impresso composto com os tipos da Civilité de um documento escrito com a mão bastarda, ela tem seu lugar na história como uma das primeiras tipografias cursivas, abrindo espaço para que outras formas de escrita manual fossem reproduzidas em linguagem de máquina.
Letra Brasileira, de Sandro Fetter
Você lembra como aprendeu a escrever? Embora algumas pessoas discutam a importância do aprendizado da letra cursiva por crianças, os cadernos de caligrafia ainda são presentes nos primeiros anos escolares em quase todo o mundo. Passo a passo, letra por letra, a criança aprende a desenhar com lápis os gestos que serão repetidos nos cadernos de ciências básicas e, com o passar do tempo, adaptados para uma escrita manual mais ágil. Porém, não existe um modelo universal de ensino da escrita. Cada país tem a sua própria “mão” para a caligrafia escolar; algumas nações pode até ter mais de um modelo, de acordo com suas dimensões e complexidades.
No Brasil, por exemplo, não há uma unanimidade sobre o modelo de caligrafia escolar. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não estabelece um modelo nacional padrão de escrita escolar. Dessa forma, podemos observar diferenças sobre como uma mesma letra é ensinada em cartilhas, manuais e livros didáticos diversos. Foi para entender as diferenças existentes no ensino da caligrafia e propor um modelo que contemplasse as demandas de professores e pedagogos, que Sandro Fetter, type designer e professor da UFRGS, desenvolveu a Letra Brasileira como um produto final de sua tese de doutorado.
A Letra Brasileira caminha numa seara aberta no Brasil pela Kindergarten/Bê-a-bá, de Tony de Marco, que primeiro codificou em uma fonte digital os traços básicos da caligrafia escolar ensinada no Brasil. Contudo, a Letra Brasileira inova ao não fixar cada letra em um desenho imutável; o projeto traz consigo fontes que acompanham os primeiros anos da vida escolar da criança, adicionando complexidade do desenho da letra aos poucos. O aluno começa a aprender a escrita com formas mais simples, para depois preocupar-se em fazer a famosa escrita contínua, com todas as letras ligadas “sem tirar a ponta da caneta do papel”.
O projeto tipográfico de Fetter é resultado de uma extensa pesquisa a respeito de como a escrita é ensinada em diferentes regiões do país, as heranças de caligrafias escolares de outros países, os materiais e meios existentes para o ensino, e como a tipografia pode colaborar neste contexto. O conhecimento acumulado nesta pesquisa credenciou Sandro como líder no trabalho de pesquisa global, que serviu de base para a família tipográfica Playwrite, da TypeTogether. Tanto a Letra Brasileira quanto a Bê-a-bá e outras fontes baseadas em modelos caligráficos escolares de dezenas de países estão catalogados no projeto Primarium, desenvolvido pela TypeTogether em parceria com o Google Fonts e a UFRGS.
Presente no aplicativo de educação infantil Skriva, a Letra Brasileira começa a fazer uma diferença positiva num mundo que, com crianças sendo apresentadas cada vez mais cedo a dispositivos eletrônicos com teclados físicos e virtuais, coloca em debate a necessidade das escolas ensinarem caligrafia para os novos alunos. Quem defende a presença da caligrafia, mesmo sem um modelo padrão definido, tem como argumento a melhoria na coordenação motora fina de crianças que aprenderam caligrafia em seu início de vida escolar, como observado em várias pesquisas acadêmicas. Até o estado norte-americano da Califórnia retomou a obrigatoriedade do ensino de caligrafia para crianças. Se nem a tipografia, com seus mais de 500 anos, não tornou ultrapassada a necessidade de escrever à mão, não serão os tablets e smartphones a fazê-lo. Ao menos, por enquanto.
Onde adquirir
St. Augustin Civilité, de Robert Granjon e Jonathan Hoefler, em Hoefler & Co.
Playwrite Brasil, de Veronika Burian e José Scaglione, em Google Fonts.
Letra Brasileira, de Sandro Fetter, diretamente com o autor.
Escrito em 101773.110
Muito louco comonuma coisa "básica" impacta pro resto da nossa vida. Esses dias tava refletindo como copiar a caligrafia das professoras na época da escola meio q impactou em eu ser designer hoje em dia. AMAVA copiar as letras que achava bonitas de cada prof e adpatar pro meu jeito, meio q desde sempre busco referências e adapto elas pro meu jeito e visão de mundo :)
Gente, adorei! Eu sinto até hoje certa dificuldade de escrever algumas letras em cursiva. E meio que virou um mix 😂