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É pouco provável que o jesuíta belga Ferdinand Verbiest vislumbrasse os séculos por vir da mobilidade urbana enquanto, em 1672, construía o primeiro automóvel. Essa história, contudo, precisa de um pouco de cuidado com as palavras. O que chamamos de automóvel, neste caso, é um veículo de pouco mais de 60 cm movido por um propulsor a vapor, e que não carregava nada além desse mesmo propulsor. A palavra “carro” vem do latim carrus, que designa um veículo celta que carregava pessoas. Já o projeto de Verbiest malemá andava sozinho; não era carro, mas faz sentido a soma auto+móvel. Ainda nesse negócio de palavras, Verbiest usava o termo “motor” em seus diários, mas a engenharia moderna classifica o mecanismo dele, que usava vapor d’água para empurrar um disco coletor que tracionava as rodas traseiras e empurrava o carro automóvel para frente, como uma turbina.
O veículo do missionário e astrônomo flamengo precisa desses asteriscos para entrar na história do carro, mas era um sinal de que a humanidade ia querer colocar máquinas a vapor movidas a combustíveis fósseis em tudo que fosse possível. Centenas de anos depois, o fetiche pelo carro transformou a relação que temos com as cidades, fazendo com que novos centros urbanos privilegiassem o transporte automotivo desde sua concepção (deixemos o aspecto hostil disso para outro momento). Enquanto as fábricas cuspiam carros aos milhares, governos moveram mundos para criar estradas e rodovias que acomodassem milhares de automóveis, e também regulamentaram o transporte rodoviário padronizando vias e formatando a sinalização rodoviária. A história das tipografias utilizadas em rodovias e placas de trânsito, com suas criações, especificações e formas de uso, é o quilômetro zero desta edição do Tipo Aquilo.
Enquanto você lia esse lenga-lenga histórico, 146 carros novos foram vendidos mundo afora (ABI Research), 2,1 pessoas morreram e até 98 pessoas sofreram ferimentos em acidentes de trânsito (OMS). Placas de trânsito fazem parte de um contexto em que a tipografia pode (e deve) salvar vidas, facilitando o deslocamento de motoristas e orientando-os sobre quaisquer incidentes no trajeto. As tipografias mais comumente encontradas em estradas e rodovias de países com alfabeto latino foram desenvolvidas entre as décadas de 1920 e 1960 por times multidisciplinares compostos de engenheiros, psicólogos, pesquisadores e, em alguns casos, por designers.
Antes desses sistemas tipográficos, as placas tinham suas letras e setas abertas à mão, com pincel e stencil, sem nenhuma uniformidade entre países e até mesmo entre províncias e cidades. O Touring Club Italiano foi a primeira organização de motoristas a reivindicar por um sistema unificado de sinalização rodoviária, tendo produzido entre 1896 e 1974, mais de 700.000 placas de trânsito para municípios da Itália. Contudo, até pouco depois da Segunda Guerra Mundial, cada lado do Oceano Atlântico seguiu seu próprio caminho no desenvolvimento de seus sistemas de sinalização rodoviária. A Europa deu preferência à representação iconográfica, usando pictogramas para representar perigos, acidentes e pontos de atenção nas vias. Os Estados Unidos, por sua vez, optou por placas textuais, uniformizando a linguagem usada ao longo dos anos. Essa diferença é notável até os dias atuais, com países signatários da Convenção de Viena sobre Trânsito Viário de 1968 (que o Brasil é signatário desde 1981) adotando sinalização predominantemente iconográfica, enquanto EUA e Canadá usam placas com avisos textuais.
A Alemanha deu o primeiro passo na criação de uma tipografia para sinalização de trânsito, ao publicar a norma DIN 1451 (DIN é de Deutsches Institut für Normung, a ABNT alemã) com três alfabetos voltados para uso em desenhos técnicos, placas de trânsito, gravações em materiais industriais, entre outros propósitos. Um desses alfabetos, o Engschrift (escrita condensada), deriva de um modelo para formas de letras criado pela companhia prussiana de ferrovias em 1905, que tornou-se padrão com a unificação das ferroviárias teutônicas em 1920. A Engschrift já era bastante usada quando os engenheiros da DIN publicaram a norma 1451 institucionalizando a escrita condensada e trazendo outros dois modelos derivados dela: a Mittelschrift (escrita média) e Breitschrift (escrita larga). Atualmente, a DIN é usada em placas de trânsito não apenas na Alemanha, mas também em Cingapura, Chéquia, Letônia, Síria e nos países da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral.
O Reino Unido, por sua vez, adotou uma tipografia própria para a reconstrução de seu sistema de rodovias, que havia sido destruída na Segunda Guerra Mundial. Os ingleses Jock Kinneir e Margaret Calvert foram os primeiros designers a trabalhar num sistema de sinalização rodoviária, tendo desenvolvido entre 1957 e 1963 especificações para a composição de placas de orientação. Kinneir e Calvert criaram também uma tipografia inspirada na Akzidenz Grotesk e nas letras criadas por Edward Johnston para o sistema de metrô de Londres, que gerou críticas de designers e artistas mais conservadores quando as primeiras letras foram publicadas no The Times em 1958. David Kindersley, escultor e gravador inglês, foi a principal voz entre os críticos, criando um coro favorável à sua tipografia serifada para as placas. Após uma bateria de testes encomendada pelo Ministério dos Transportes do Reino Unido, em 1962, a os tipos de Kinneir e Calvert foram mantidos, e atualmente encontram-se em uso também em outros países, como a Espanha, Portugal, Malta, Índia, Irã e Hong-Kong.
O sistema rodoviário francês também conta com caracteres próprios para composição de placas, usando majoritariamente os modelos L1 e L2 (com caracteres maiúsculos) para indicar cidades ou vilarejos, e o L4 (com caracteres itálicos maiúsculos e minúsculos, inspirados na Univers) para locais e pontos de interesse próximos. Instituído em 1963, ele é utilizado tanto na França quanto em países africanos francófonos, como a Argélia e a Tunísia. Entre as décadas de 1960 a 1990, os modelos L1 e L2 foram também utilizados no sistema rodoviário brasileiro, embora o Brasil nunca tenha instituído uma tipografia de referência para a confecção de placas. Esse vazio faz com que seja possível encontrar placas mais antigas usando os caracteres L1/L2 e placas mais recentes que utilizam duas tipografias utilizadas nas rodovias norte-americanas: a FHWA Series e a Clearview (imagens, logo no início da edição).
Os EUA teve uma história particular com a indústria automotiva e a regulamentação da sinalização rodoviária. Durante a primeira metade do séc. XX, houve uma gama de esforços dedicados a uniformizar placas e sinais entre os 51 estados, que espalharam os semáforos (inventados em 1912) e um sistema que indicava risco para o motorista de acordo com a quantidade de lados da placa. Placas redondas (com infinitos lados) indicavam risco máximo e eram reservadas para cruzamentos com ferrovias; placas octogonais indicavam pontos de parada obrigatória; e placas retangulares eram designadas para avisos textuais. Em 1948, a Federal Highway Administration publicou sua primeira especificação de formas de letras para sinalização rodoviária, composta de seis modelos indo das letras mais condensadas (A) até as mais largas (F), com variações de peso para contrastes positivo e negativo. A FHWA Series — posteriormente chamada de Highway Gothic — sofreu algumas revisões com o tempo, mas persiste até hoje como a tipografia padrão de sinalização rodoviária nos EUA.
Ao introduzir novos materiais fotorrefletores para placas de trânsito, as letras da FHWA Series passaram a sofrer com a formação de halos ao redor delas quando iluminadas pelos farois, e letras como “e”, “o” e “s” tornavam-se indistinguíveis. Com isso, uma nova especificação de letras foi desenvolvida com supervisão da FHWA, e em 2004, a instituição passou a recomendar uma nova tipografica, chamda Clearview, desenvolvida por Don Meeker e James Montalbano a pedido do Texas Transportation Institute, para composição de placas de sinalização rodoviária. Desde então, uma batalha foi erguida, com a mesma instituição retirando a recomendação em 2016, após estudos não comprovarem uma legilidade superior da Clearview e até apontarem problemas com seu uso em contraste negativo (texto escuro em fundo branco). A recomendação foi reinstituída por lei em 2018, mas o uso da Highway Gothic ainda é predominante. Em províncias canadenses como Ontario e British Columbia, além de países como Indonésia e Filipinas, a Clearview ainda é recomendada.
Mas Cadu, afinal de contas, o que faz uma fonte ser considerada apropriada para sinalização rodoviária? Teoricamente, uma tipografia para sinalização rodoviária tem como algumas de suas características principais:
distinções mais evidentes entre letras parecidas, como “I”, “l” e “1”;
formas que funcionam melhor sob efeito de iluminação direta e halação (quando forma-se um halo luminoso ao redor das letras);
letras minúsculas com medidas de altura-de-x maiores, quando comparadas com fontes para texto;
espaços generosos entre letras, que facilitam a leitura a longa distância, velocidades elevadas e condições de visibilidade baixa;
uso com materiais fotorrefletores e pontos de luz dentro das letras.
A Highway Gothic, a Transport e a L1/L2 também têm variações sutis de peso para placas com contraste negativo (com letras mais espessas) e positivo (com formas mais finas). Por fim, como você pode ter observado, não há espaço para serifas entre as fontes mais usadas nas rodovias mundo afora, por elas poderem tornar o efeito de halação ainda pior em certas letras.
Apesar disso, é possível ver algumas fontes criadas para outros propósitos sendo usadas na sinalização rodoviária. A Suíça utiliza uma versão adaptada da Frutiger, criada para wayfinding de aeroportos; em alguns países do Oriente Médio e Ásia Menor, a Arial é utilizada por conter caracteres tanto para escrita em árabe quanto para transliteração (e foi usada também naquelas terríveis placas de sinalização no Brasil durante a Copa do Mundo de 2014); e até a unificação alemã de 1989, algumas placas de trânsito usavam a Gill Sans. Em algum ponto, a convivência dos motoristas com certas fontes acaba virando um critério a favor ou contra a legibilidade das placas, e isso é um fator difícil de medir, por mais que uma tipografia de sinalização rodoviária precise de um certo rigor científico para indicar caminhos, aletar sobre incidentes, facilitar a locomoção, salvar vidas e tornar as road trips mais prazerosas.
Recomendações
🎧 Podcast: CBN Direção Segura, com o Inspetor da Polícia Rodoviária Federal no Espírito Santo (PRF-ES) Izaque Rohr tirando dúvidas sobre sinalização vertical e horizontal nas estradas brasileiras.
🎥 Vídeo: Por quê as placas de trânsito dos EUA são diferentes do resto do mundo?, (em inglês) mostrando as diferenças históricas na consolidação do regulamento de trânsito na América do Norte e na Europa.
🔗 Link: Commonplaces, um diretório de links para download de algumas das fontes de sinalização rodoviária comentadas nesta edição.
🇧🇷 Fonte brazuca: Bonde, de Álvaro Franca.
Escrito em 101190.11